Crítica | Festival

O Diabo na Rua no Meio do Redemunho

O casamento de Bia e Rosa

(O Diabo na Rua no Meio do Redemunho , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Bia Lessa
  • Roteiro: Bia Lessa
  • Elenco: Caio Blat, Luiza Lemmertz, Luisa Arraes, Leonardo Miggiorin, Lucas Oranmian, José Maria Rodriguez, Daniel Passi, Clara Lessa
  • Duração: 125 minutos

Bia Lessa é uma artista do teatro, que eventualmente chegou perto do cinema. O Diabo na Rua no Meio do Redemunho é a sua terceira vez, sendo que a vez anterior, pra mim, cheira a clássico nunca lançado, Então Morri. Esse novo é um desdobramento de uma ideia que Lessa veio desenvolvendo nos palcos, e que ela leva até o cinema com seu olhar quase intacto. É Cinema, definitivamente, mas nunca deixa de ser Teatro também, e do hibridismo que nasce desse encontro é que a diretora se permite a envolver sua narrativa de lúdico, transformando a mensagem em algo múltiplo. Está em cena uma união quase perfeita entre duas artes interconectadas, colocada em cheque por uma artesã que já não tem mais nada a provar. 

Há um inicial maravilhamento entre reencontrar a prosa de João Guimarães Rosa, a criatividade com a qual sua verbalização soava, o requinte de sua prosódia e a forma como o regionalismo nunca soava hermético. Nós, enquanto espectadores, tendo convivido com as possibilidades irrefreáveis da língua portuguesa e o tanto de caminhos diversos que ela pode abarcar, estarrecer diante logo dos primeiros minutos. Mas isso não é obra exclusiva de O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, e sim de um autor genial que inspira essa outra obra igualmente especial. O interessante é perceber o que Lessa concebe de igual criativo ao se debruçar sobre um campo alargado de complexidade e aproveitamento de campo. 

Como essa experiência é quase um complemento ou uma expansão do que Lessa já tinha apresentado no teatro, o que estamos vendo precisa ser sentido a partir de um aspecto de ruptura, sem um olhar conservador em relação ao que se objetifica. Não se trata de ‘teatro filmado’, o que O Diabo na Rua no Meio do Redemunho apresenta jamais poderia ser lido dessa forma, tendo em vista que profundidade de campo, ressignificação de marcações cênicas e constituição de trabalho corporal do ator são ímpares aqui. A câmera não está estática, à espera de um texto; nosso olhar não é encorajado a não reagir diante de um estado de letargia. A diretora tem agilidade no que capta e transforma para o espectador, sem que se perceba que estamos diante de um filme de ação. 

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Toda esse dinamismo está presente em cada corpo, em cada luz projetada, em cada inflexão verbal, em cada despojamento da mise-en-scene. Não é somente um objetivo, porém todos, que acabam por desenhar uma ideia do real em meio a um tablado. Aos poucos, os olhos começam a ver – as mãos-armas, os corpos-peixes, os braços-pássaros, a força dos ventos, a fúria do mar, o calor do sol, o sabor do beijo. O Diabo na Rua no Meio do Redemunho expande nossas certezas para fora do que está concreto, e alcança a poesia da fala para a transformação de cada movimento em cena. Na fotografia estonteante de José Roberto Eliezer (que o oxigena para além das comédias que ele vinha fazendo, e o coloca de encontro com o profissional que concebeu Chatô), tudo que está ao alcance da visão vira balé e toma o plano com força descomunal. 

Do elenco, não há ponto agudo ou elemento brando – é um dos mais coesos grupos a mostrar sua força recentemente. No entanto, se Caio Blat e Luisa Arraes não podem mais ser elevados além do que já o são, Luiza Lemmertz segue a tradição familiar de mulheres fabulosas, e Leonardo Miggiorin está em grande momento de carreira, mais uma vez. O grupo, porém, é uniforme porque assim Lessa o coordenou, e sua inquietação corresponde ao que a autora concebe por eles; O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, assim como tudo que sua diretora concebe, tem valor único, e não pode ser comparado a qualquer outra incursão coletiva. É um daqueles casos raros onde nem todas as linhas seriam capazes de fracionar o que acontece em cena, o que é visto e vivenciado entre corpo de atores e público. É uma experiência indissociável e subjetiva, como as maiores obras do qual temos a felicidade de acessar. 

Um grande momento

O rio

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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