- Gênero: Drama
- Direção: Bia Lessa
- Roteiro: Bia Lessa
- Elenco: Caio Blat, Luiza Lemmertz, Luisa Arraes, Leonardo Miggiorin, Lucas Oranmian, José Maria Rodriguez, Daniel Passi, Clara Lessa
- Duração: 125 minutos
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Bia Lessa é uma artista do teatro, que eventualmente chegou perto do cinema. O Diabo na Rua no Meio do Redemunho é a sua terceira vez, sendo que a vez anterior, pra mim, cheira a clássico nunca lançado, Então Morri. Esse novo é um desdobramento de uma ideia que Lessa veio desenvolvendo nos palcos, e que ela leva até o cinema com seu olhar quase intacto. É Cinema, definitivamente, mas nunca deixa de ser Teatro também, e do hibridismo que nasce desse encontro é que a diretora se permite a envolver sua narrativa de lúdico, transformando a mensagem em algo múltiplo. Está em cena uma união quase perfeita entre duas artes interconectadas, colocada em cheque por uma artesã que já não tem mais nada a provar.
Há um inicial maravilhamento entre reencontrar a prosa de João Guimarães Rosa, a criatividade com a qual sua verbalização soava, o requinte de sua prosódia e a forma como o regionalismo nunca soava hermético. Nós, enquanto espectadores, tendo convivido com as possibilidades irrefreáveis da língua portuguesa e o tanto de caminhos diversos que ela pode abarcar, estarrecer diante logo dos primeiros minutos. Mas isso não é obra exclusiva de O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, e sim de um autor genial que inspira essa outra obra igualmente especial. O interessante é perceber o que Lessa concebe de igual criativo ao se debruçar sobre um campo alargado de complexidade e aproveitamento de campo.
Como essa experiência é quase um complemento ou uma expansão do que Lessa já tinha apresentado no teatro, o que estamos vendo precisa ser sentido a partir de um aspecto de ruptura, sem um olhar conservador em relação ao que se objetifica. Não se trata de ‘teatro filmado’, o que O Diabo na Rua no Meio do Redemunho apresenta jamais poderia ser lido dessa forma, tendo em vista que profundidade de campo, ressignificação de marcações cênicas e constituição de trabalho corporal do ator são ímpares aqui. A câmera não está estática, à espera de um texto; nosso olhar não é encorajado a não reagir diante de um estado de letargia. A diretora tem agilidade no que capta e transforma para o espectador, sem que se perceba que estamos diante de um filme de ação.
Toda esse dinamismo está presente em cada corpo, em cada luz projetada, em cada inflexão verbal, em cada despojamento da mise-en-scene. Não é somente um objetivo, porém todos, que acabam por desenhar uma ideia do real em meio a um tablado. Aos poucos, os olhos começam a ver – as mãos-armas, os corpos-peixes, os braços-pássaros, a força dos ventos, a fúria do mar, o calor do sol, o sabor do beijo. O Diabo na Rua no Meio do Redemunho expande nossas certezas para fora do que está concreto, e alcança a poesia da fala para a transformação de cada movimento em cena. Na fotografia estonteante de José Roberto Eliezer (que o oxigena para além das comédias que ele vinha fazendo, e o coloca de encontro com o profissional que concebeu Chatô), tudo que está ao alcance da visão vira balé e toma o plano com força descomunal.
Do elenco, não há ponto agudo ou elemento brando – é um dos mais coesos grupos a mostrar sua força recentemente. No entanto, se Caio Blat e Luisa Arraes não podem mais ser elevados além do que já o são, Luiza Lemmertz segue a tradição familiar de mulheres fabulosas, e Leonardo Miggiorin está em grande momento de carreira, mais uma vez. O grupo, porém, é uniforme porque assim Lessa o coordenou, e sua inquietação corresponde ao que a autora concebe por eles; O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, assim como tudo que sua diretora concebe, tem valor único, e não pode ser comparado a qualquer outra incursão coletiva. É um daqueles casos raros onde nem todas as linhas seriam capazes de fracionar o que acontece em cena, o que é visto e vivenciado entre corpo de atores e público. É uma experiência indissociável e subjetiva, como as maiores obras do qual temos a felicidade de acessar.
Um grande momento
O rio