(The Social Dilemma, EUA, 2020)
“Se você não está pagando por um produto, então você é o produto”
Logo na primeira parte de O Dilema das Redes, novo documentário que estreia hoje na Netflix, essa frase aparece como uma cartela sobre a produção, igual a tantas outras que igualmente aparecerão e nos darão pensamentos que nos levarão a analisar como seus autores parecem antenados a um mundo que não viveram, mas que na verdade esconde uma das constatação a que o filme logo chegará: estamos todos sujeitos a práticas de manipulação já existentes há anos, que só se sofisticaram, mas cujas táticas de aproximação e convencimento são bases tão eficazes que ainda se justificam.
O filme, exibido no Festival de Sundance, na verdade não nos apresenta idéias necessariamente novas sobre um universo que já se mostra doentio de maneira crescente há muitos anos; na verdade muito do alcance do filme se dará justamente entre àqueles que já tenham conhecimento sobre o horror propagado durante a projeção. Mas uma das falas finais de um de seus personagens centrais, Jaron Lenier, é a de que basta despertar apenas uma consciência para fazer a diferença, e esse é basicamente o pensamento do diretor Jeff Orlowski, do indicado ao Oscar por Chasing Ice.
Lenier é um filósofo da computação e o autor de “10 Argumentos para Você Deletar suas Redes Sociais Agora“, obra que de alguma forma é debatida no filme, cuja discussão se baseia nessa ideia estarrecedora (porém amplamente conhecida) sobre como o sistema mundial de computadores no geral e as redes sociais em particular roubam muito mais que dados de seus usuários. A princípio bem particularizada enquanto movimento de destruição emocional, o filme amplia seu escopo gradativamente e nos apresenta um quadro bem didático sobre o estado das coisas no presente.
Cinematograficamente nada é particularmente original quanto à sua estrutura, e a produção ainda apela para estranhas dramatizações que soam tão canhestras e desnecessárias, que invadem uma família sem necessariamente lhes dar humanidade – apenas funcionalidade ao conceito. Porém, O Dilema das Redes tem um arco de pensamento tão urgente que mesmo sua obviedade vai se revelando pertinente pois é tratada em conjunto de problemas tão frugais quanto desoladores, e as dramatizações começam a criar uma bizarra organicidade com o todo – embora incomode muito, e sempre.
Tristan Harris talvez seja a figura central de O Dilema das Redes. Ele é um ex-funcionário do Google, encarregado de práticas de persuasão humana através das mídias sociais; hoje, Tristan é um ativista contra práticas das mais bilionárias empresas do mundo, e tem as falas provavelmente mais contundentes do filme. Através dele, questionamos o tempo que ficamos online, o hábito de sempre puxar o Facebook pra baixo em busca de atualização e junto dele ouvimos declarações de outros profissionais que afirmam que o corpo humano não é programado para a onda de dopamina constante causada por excesso de likes – e que se torna um problema emocional cada vez mais grave quando os mesmos não acontecem na quantidade que acostumamos.
Ainda que advogando para iniciados, o filme é uma arma de análise particular sobre manias que criamos a partir da invasão das mídias sociais em nossas vidas; é muito curioso observar esses mesmos personagens que criticam as práticas combatidas por seus discursos assumirem que também eles têm algum grau de vício virtual. Desenhando um quadro que vai de depressão e suicídios na adolescência que cresceram exponencialmente em um século até a polarização que as fake news produziram e geraram um colapso nas democracias globais (com direito a imagens do nosso governo fascista), e as consequências que já nos tornou, O Dilema das Redes é um filme de terror daqueles que você já tinha conhecimento de todos os jump scares, mas que ainda provoca taquicardia no espectador… e a certeza de que esse vício precisa ser combatido.
Um grande momento
“I put a spell on you”