Crítica | Festival

A Passagem

(Il varco, ITA, 2019)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Federico Ferrone, Michele Manzolini
  • Roteiro: Giovanni Cattabriga, Federico Ferrone, Michele Manzolini
  • Duração: 70 minutos

Negativos antigos, desgastados, imagens incompreensíveis, manchas que se aproximam até ganhar alguma forma conhecida. A Passagem faz exatamente isso, recupera imagens e espera que elas se revelem, na guerra, no frio da Ucrânia durante a ofensiva do reich contra a União Soviética. A Itália de Mussolini, aliada da Alemanha, enviou ao lugar suas tropas e jornalistas para registrar o sucesso que nunca aconteceu.

Retalhos em branco e preto vão se unindo acompanhando a voz de um suposto oficial. Assim como Meu Pretzel Mexicano, o longa de Federico Ferrone e Michele Manzolini cria em cima da realidade e a narrativa é coerente com os sentimentos de guerra. O veterano olha com tristeza a animação dos recrutas que partem e fala sobre apoio da população dos países por onde passam, mas o futuro é por ele conhecido de outras guerras que também aparecem aqui.

A Passagem (2019)

As imagens de antes vão tornando-se pesadas e a narração as acompanha, ou será o contrário nesse jogo de criação no real. A propaganda de Mussolini fracassa, assim como o exército italiano, agora desprezado pelos alemães e pelos populares. No frio da Ucrânia, diante da resistência dos soviéticos, a única ação é lutar pela sobrevivência e pela sanidade. Demonstrando a habilidade na construção de camadas, imagens bucólicas da terra natal de crianças e mulheres são como respiros criados por aqueles homens para enfrentar uma realidade indesejada.

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A Passagem é um jogo triste, mas extremamente complexo que mistura experiências e, com elas, constrói uma nova realidade. Há um ato muito simbólico no desconstruir imagens que foram utilizadas como peças de exaltação do fascismo, dar a elas um novo significado, contrário ao original. Do revés, o retorno de algumas das vidas, já que outras perderam-se no caminho e a insegurança do voltar para casa depois de tornar-se outra pessoa.

Além da criatividade na elaboração narrativa, todo o trabalho de pesquisa e montagem impressiona, assim como a pontuação sonora. Há muita habilidade e consciência na composição dessa trama codependente, imagens e palavras que se precisam mutuamente, ressignificando-se. Mais do que a reconstrução de um passado, a subversão das imagens, o filme, ainda que de maneira menos hábil, busca a relação com o presente, em imagens esmaecidas que contrastam com o antigo. As pessoas são outras, mas a guerra continua, no mesmo lugar, do mesmo jeito.

Entre o documentário e a ficção, a verdade e a fabulação, A Passagem capta a essência de qualquer conflito bélico. Não há justificativa para a guerra, nem vitória, só há medo, desumanização e morte. O final, marcante, deixa isso muito claro, são milhares de histórias que não tem fim, ou porque não a existência foi tomada ou porque aquele soldado não reconhece mais o seu lugar no mundo. A imagem de si, como no começo do filme, quase não existe mais.

Um grande momento
O final.

[Festa do Cinema Italiano 2020]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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