Crítica | Festival

Estranho Caminho

Viagem interior

(Estranho Caminho, BRA, 2023)
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Guto Parente
  • Roteiro: Guto Parente
  • Elenco: Lucas Limeira, Carlos Francisco, Rita Cabaço
  • Duração: 83 minutos

No caminhar da existência, rupturas e afastamentos são naturais, mas algo na atualidade parece ter feito com que as distâncias se alargassem. Ao mesmo tempo, um momento de isolamento forçado fez a humanidade olhar para si mesma de uma maneira inesperada, compreendendo – ou tentando compreender – relações e ausências. Estranho Caminho, novo filme de Guto Parente, único título brasileiro no Festival de Tribeca 2023 e grande vencedor da edição, com os prêmios de filme, roteiro, fotografia e melhor ator (Carlos Francisco) na categoria internacional, é sobre isso. Há, sim, algo muito pessoal e específico, mas que em sua particularidade reflexiva encontra a universalidade. São estruturas, vínculos e sentimentos de fácil identificação que se repetem.

A jornada, como avisa o título, é estranha. Não seria diferente quando se pensa no resgate de uma ausência dolorosa e sua prévia relação silenciosa e distante, e menos ainda se quem a enforma é Parente, diretor que não se importa em manipular imagens e sons para provocar os sentidos. Da história que conta, ele pega emprestado as possibilidades visuais que entregou a seu protagonista para alterar o naturalismo dominante; sua habilidade com elementos domina os vazios e silêncios já tão específicos de um momento da história recente para trazer um certo tom sombrio ao longa; além de saber onde encontrar as variações que precisa mesmo com a restrição espacial e, basicamente, dois atores em cena: Lucas Limeira (Cabeça de Nêgo), o filho, e, Carlos Francisco (Marte Um), o pai.

Ambos, aliás, assimilam e compreendem o momento de seus personagens, o que possivelmente vai além da interpretação por se tratar de algo tão familiar. O Geraldo de Carlos Francisco surge gigante assim como ele. Uma figura que se constrói de presença e memória, e se alterna entre o acolhimento e o assombro. Sua presença traz estranhamento e humor, curiosidade e, por vezes, indignação. Ele é um e tantos outros, não apenas o de David. Talvez esteja marcado por um tempo, por uma realidade, ou não, mas é prefeito na contraposição, nesse quase antagonismo pelo estar não estando. Algo que o roteiro do próprio Parente reverte e faz com que ganhe outros contornos com a pandemia de Covid-19, que mudou vidas, relações e a percepção de todos sobre as coisas mais elementares da existência.

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Se o simples fato de alcançar essa relação já é algo que aproxima, a opção – e por vezes o mais correto seria dizer percepção – de Estranho Caminho torna tudo inescapável. Porque, marcado por um momento muito específico, de efeitos avassaladores, o longa sabe como traduzi-lo. Acompanhar David em sua reaproximação compulsória com o passado é compreender que o isolamento pelo qual todos (ou muitos) passaram foi, antes de tudo, um tempo em que estar consigo mesmo e com os seus traumas, projeções, medos e carências era uma interação obrigatória. Como se se abrisse uma fenda inescapável para acessar espaços esquecidos para onde se pode não olhar porque não há tempo para isso. Tempo ou intenção. Não havia até então.

Daí se configura a relação entre seres e espaços em descoberta que nos é dada a observar. E Parente é habilidoso ao arrematar seus tecidos,  ilustrando os sentimentos do protagonista, ora carregando na aura fantástica, ora fazendo do cinema de David a única possibilidade de alcançar aquilo que rompe com o que sempre foi tratado de maneira mais palatável do que deveria e menos visceral do que precisava. Além das imagens, o diretor cria momentos cheios de significado, em pequenas posturas, tentativas de contato ou mesmo em diálogos. Há um em especial, aquele que marca o encontro de pai e filho, que vai tratar ainda de um monte de outras coisas como permanência e manutenção. 

A leitura conjunta fala de tempo e ausência, mas também daquilo que fica mesmo que o outro não esteja ou não tenha estado, por uma questão de configuração social. É justamente no contato com o patriarcado, em um texto bem característico, que David descobre a possibilidade de sentir. E o que seria incongruente encontra naturalidade na situação. Na alternância de vozes, o conteúdo se ressignifica. Geraldo e David restabelecem a paternidade e refutam a estrutura patriarcal. É para a reconexão que leva o estranho caminho. Em uma aparente impossibilidade, mas no real encontro.

Um grande momento
Pedindo pra ver o filme

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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