Crítica | Catálogo

O Menino e a Garça

A dor e o tempo

(君たちはどう生きるか, JAP, 2023)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Hayao Miyazaki
  • Roteiro: Hayao Miyazaki
  • Duração: 122 minutos

Não é todo dia que escrevemos sobre um gênio pela primeira vez. Sem pedir licença a ninguém (nem aos resignados a uma vida sem paixão, como parecem ser grande parte dos meus colegas de profissão), não farei parte do coro dos descontentes: sem medo de parecer excessivo na fala, O Menino e a Garça é um dos maiores acontecimentos cinematográficos da temporada. E isso independe de ser dirigido por Hayao Miyazaki, ou só é possível porque estamos diante da melhor forma de um mestre. Depois de dois filmes – esses sim – menores, não é para todos que se aceite conceber em seu crepúsculo um desvario tão extravagante sem jamais perder de vista sua identidade, sua história e sua experiência. Eu sei, é difícil conceber à contemporaneidade a concepção do histórico, do maior, mas há de se fazer humilde em reconhecer a magnificência quando presenciada. 

Depois de um parágrafo de adjetivos, bem do jeito que afastará os empombados que se julgam superiores ao analisar o trabalho alheio, precisamos adentrar O Menino e a Garça pela lente da dor profunda, física e emocional. O tema em questão é ainda mais excruciante pela dor que poucos leitores sentirão, aquela provocada pelo testemunho da perda. O pequeno não apenas se tornou órfão de mãe, ele sentiu o calor que a vitimou, ele quase se tornou ela. Miyazaki resolve esse imbróglio visual no primeiro dos muitos arrebatamentos que iremos sentir, ao borrar a imagem com os rastros de labareda que lambem a tela. De maneira poética, um dos maiores cineastas japoneses da História nos coloca a um só tempo como reféns da fantasia e absolutamente conectados à realidade. Em tempo de guerra dentro e fora da tela, quantas manchas rasgaram e continuarão a rasgar a memória, ao sempre repetir suas imagens de perda.

Essas cenas de horror são o primeiro de muitos clímaxes de O Menino e a Garça, mas momentos antes vemos se arrumar para sair correndo pelas vias. Antes de sua disparada, ele veste o pijama e se calça; nada dura mais que 20 segundos de arte, mas a forma como aquilo é recepcionado atinge semanas após a sessão com intensidade. Miyazaki contrasta a mais pura singeleza e naturalismo com uma rachadura radical para um flerte com o cinema de gênero mais direto, de grafia rebuscada e exagero radical, que compreendemos que essa é a ranhura proposta na obra. Nossa essência, a tessitura mais planificada de nossa existência, precisa vir à tona em meio ao caos do trauma. Será essa fina linha que nos resgata a humanidade que terá de ser apontada quando sairmos deslocados a buscar refúgio nos cantos mais assustadores da nossa imaginação. 

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Mais uma vez, o cineasta acerta ao apostar em um protagonista infantil para sua obra, e o sentido aqui é ainda mais claro. Como seus universos fabulares constantemente são associados a elucubrações juvenis em seus mergulhos causados por alguma camada de dor, em O Menino e a Garça essa intensidade é tamanha que o portal aberto também contempla o horror. Sim, existem elementos do cinema de gênero em algumas de suas obras, isso não é um cardápio inédito. O que parece ter adquirido ineditismo aqui é, desde o início, o apreço por algo mais aderente à imagem, que não é encarregado de configurar por uma segunda imaginação, no caso a do espectador. Alguns momentos poderiam estar classificados dentro de antologias de imagens da perturbação, até sermos apresentados a um corpo feminino que derrete, como em algum momento do clássico Museu de Cera, de 1953. Nada disso é exploratório, e sim um novo desdobramento da imaginação infantil, que pode ser ingênua, mágica, mas também soturna, enigmática e apavorante.

O mundo do qual nosso protagonista adentra, e a aventura do qual ele gradativamente adere quase de maneira integral, pode ter elementos de obras como A Viagem de Chihiro, mas se um cineastas prestes a se aposentar com mais de 80 anos não pode fazer uma revisão, quem poderá? De qualquer maneira, acho que o grafismo do Studio Ghibli no geral e aqui em particular, está em processo de texturização que ficou evidente em O Conto da Princesa Kaguya, e aqui adquire ampliadas cargas de possibilidades. Está no sempre exemplar tratamento sonoro e na forma aplicada com o qual presenciamos cada movimento dos personagens, seja ele humano, animal, vegetal ou da qualificação que for. Não é uma ideia concreta que se desempenha em cena, mas é um sentido aguçado de assertividade que O Menino e a Garça consegue em suas finalizações, no que contempla o que é próprio das pessoas e do que é mágico.

O resultado bebe na fonte do lisérgico quase em toda sua extensão, unindo a ideia de pureza frequente no tratamento do infantil – que não é idiotizado – com uma psicodelia que carrega o adulto para dentro da narrativa. É excesso de maravilhamento que não está exclusivo nos traços e na descoberta contínua de mundos, na apresentação de personagens que já nascem clássicos (as vovós da mansão, a forma como a garça do título não para de mostrar-se, os bebês balões e tanto mais), nem no estado contínuo de sintonia com o qual tudo se une. Acima de tudo, existe em O Menino e a Garça algo que vai além da análise sobre o eterno amadurecer que não está somente na juventude, como a pressão que existe por trás inclusive dos nossos mestres e todas as áreas para com a finitude. Essa é uma história sobre perdas, mas também sobre aceitação a respeito da inevitabilidade das coisas. Vida, morte e o além de ambas – processo contínuo e cíclico do qual todos iremos passar. Hayao, eu e vocês.

Um grande momento

Os sapos 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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