Crítica | Streaming e VoD

O Rei das Sombras

Caminho espinhoso

(Le Roi des Ombres, FRA, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama, Policial
  • Direção: Marc Fouchard
  • Roteiro: Marc Fouchard
  • Elenco: Kaaris, Alassane Diong, Carl Malapa, Assa Sylla, Issaka Sawadogo, Hassam Ghancy, Mareme N'Diaye, Tatiana Rojo, Jonas Dinal, Joseé Schuller
  • Duração: 85 minutos

Ao mesmo tempo em que assusta, surpreende ver um filme enfim dizer o que eu sempre disse: laço de sangue, se não alimentado, significa tanto quanto uma lata de sardinha vazia – nada. O Rei das Sombras, um dos sucessos atuais da Netflix, investe em uma narrativa curiosa abordando uma família absolutamente disfuncional inserida dentro de um contexto de criminalidade e que escolheu não se amar; ou melhor, escolheu ver uns aos outros como pessoas como quaisquer outras. Não é exatamente o que todos somos, seres humanos iguais uns aos outros? Esse afeto que nasce entre os integrantes de um mesmo círculo familiar acontece porque é alimentado, e se não é, as pessoas simplesmente convivem umas com as outras, e só. 

Com 10 minutos de produção, o pai dos protagonistas dá um tapa de mão cheia na cara de um dos filhos adolescentes que é de doer em quem assiste; é o primeiro sinal de que não estamos diante de um filme igual aos outros, sobre conflitos familiares. Crescidos, um dos irmãos se torna um poderoso traficante local e o outro, acaba por perder a visão ao ser atropelado. Nada disso os faz mais ou menos empáticos um com o outro, muito menos recebe qualquer traço plus de afeto. Quase como estranhos, todos os integrantes (não apenas os protagonistas) afundam cada vez mais em suas próprias escolhas, sem pensar em qualquer que seja o outro, muito conscientes de suas decisões individuais. 

O Rei das Sombras
Netflix

Não considero O Rei das Sombras um filme cínico, ou mesmo que possa ser tachado de amargo. O que vemos é extraído quase de maneira realista, sem concessões ou alguma espécie de paternalismo em relação ao jogo familiar. Por não vermos quase nunca uma abordagem tão crua, onde o carinho há muito já se esvaiu, a produção tende a assustar quem espera algo com toques de redenção e símbolos de reconstrução; o diretor e roteirista Marc Fouchard parece bem pouco disposto a encontrar algo do tipo. Em seu lugar, temos o passado como agente ainda preponderante para determinar o presente, com direito a uma abertura para que possamos compreender onde e quando tudo começou a dar errado.

Apoie o Cenas

Um outro aspecto sob a qual O Rei das Sombras comenta, com menor êxito, é a descendência africana de seus personagens, que com isso carregam fortes traços de crenças no oculto. As mulheres mais velhas creem em forças que podem ter conduzido todas as desgraças que se abatem sobre a família de maneira tão forte, que em certo momento um dos protagonistas cede à tentação de pedir que o desdobramento astral se manifeste sobre a narrativa. É uma forma de apresentar esse elementos existentes, mas que o filme coloca como sendo apenas desígnios utilizados para o mal, o que não é uma boa propaganda em tempos de intolerância religiosa. Quantos às origens do patriarca, também elas soam gratuitas, já que não há um interesse de compreender seus métodos um pouco mais. 

O Rei das Sombras
Netflix

Fouchard demonstra mais segurança na direção, onde aposta em um estado de tensão ininterrupto, onde as ações parecem sempre demarcar um novo estopim sendo acionado uns sobre os outros. A reta final de O Rei das Sombras parece atabalhoada, no entanto, porque os eventos passam a não fazer muito sentido, e os personagens passam a ser somente sádicos mesmo. De qualquer maneira, o personagem Ibrahim, vivido pelo rapper Kaaris, é daqueles tipos que dificilmente esqueceremos, e os motivos se acumulam. A performance do novo ator é desconcertante, mas ela é ajudada pelo próprio personagem, que realiza coisas cada vez mais inacreditáveis, e indefensáveis. Daqueles vilões quase de melodrama, assustadores na quantidade de atrocidades que comete.

Ainda que Adama também não seja um poço de exclusivas virtudes, sua composição mais parece fazer parte do grupo de anti-heróis do que dos vilões, lugar onde Ibrahim parece se isolar. É um lugar que O Rei das Sombras acaba levando o personagem, que o ator se entrega de cabeça a uma composição ameaçadora, sem qualquer ambiguidade. É como se fosse um rolo compressor que destrói tudo que está à sua frente, e anima ainda mais essa história curta de rancor inimaginável. 

Um grande momento

A primeira briga entre pai e filho, impactante

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo