Cinema em linhas

Entre Dante e Laxe: o inferno depois da fé

No começo, tudo é ruído. O som grave da música eletrônica pulsa como um coração desritmado, ecoando na areia. A imagem é de uma rave no deserto, mas o que se vê é mais do que uma festa, é uma congregação de corpos à beira do abismo. Assim começa Sirāt, o novo filme de Óliver Laxe, um prólogo infernal, onde o prazer e a danação se confundem.

O título vem do árabe e designa a ponte que separa o inferno do paraíso. É sobre ela que, segundo o Alcorão, toda alma deverá passar. Se o peso da culpa for maior que a leveza da fé, ela cairá. O sirāt é o fio da travessia, o limiar da existência. Em Dante, o mesmo fio se abre sob Jerusalém, pois ali está o portal do Inferno, o início da jornada pela selva escura.

Séculos depois, no mundo real, um novo inferno também se abriu sob o mesmo solo, em uma rave nas margens de Jerusalém que foi o ponto de partida para um massacre que reacendeu a guerra e mergulhou o Oriente Médio em luto. Laxe não filma essa guerra, mas seu filme vibra com o mesmo pressentimento. O inferno de hoje não é subterrâneo, está sobre a terra, e continua matando os mesmos de sempre.

No novo filme de Laxe, o inferno é o deserto. Não há demônios nem círculos ordenados; há o vazio, a poeira e a exclusão. Um pai e um filho atravessam esse não-lugar em busca da filha desaparecida, mas o que encontram é a perda total de sentido. A rave, com seus estrobos e batidas, é a atualização da selva dantesca: ali se dança para esquecer, não para celebrar. O êxtase é apenas outro nome para o esquecimento.

Dante, ao despertar no meio da floresta, confessa que perdeu “a via direita” e é exatamente o que acontece no filme. O mundo de Laxe é o da humanidade que perdeu o caminho, Já não há moral, nem teologia, nem promessa; só o corpo, o som e o desespero. O sirāt não é mais uma ponte; é o abismo aberto entre o que fomos e o que sobrou de nós.

O pai é o homem que tenta compreender o que não tem explicação. O filho é aquele que ainda não entende, mas sente o peso do mundo. E a filha ausente, sempre fora de quadro, é a própria fé, o elo perdido. Eles caminham sem guia, sem Virgílio, sem Beatriz, porque neste século, não há mais quem guie ninguém.

Inferno, Purgatório e a negação do Paraíso

Dante descreveu as almas condenadas com um misto de horror e compaixão. Em Laxe, a compaixão ainda existe, mas o horror venceu. Sirāt é habitado pelos novos danados, velhos, pessoas com deficiência, refugiados do nada. Sobreviventes de guerras invisíveis, abandonados à margem da sobrevivência. São os que não têm mais lugar no mundo, nem no discurso da salvação.

Eles vagam pelo deserto, tentam encontrar abrigo e prazer, em um barato, um gole de vinho, uma dança ou um instante de contato. Mas a cada passo, a terra os engole um pouco mais. Nas minas, o chão explode e o purgatório não é degrau, é armadilha. Atravessar o sirāt é continuar morrendo lentamente.

Laxe faz desse cenário uma alegoria cruel, onde os que sobram depois das guerras são os que o mundo prefere não ver. E, no entanto, são eles que carregam o peso da humanidade. São os corpos sem redenção, os que não encontrarão paraíso algum. O cinema aqui funciona como testemunho, não como consolo.

Na Divina Comédia, o Inferno é o reino da culpa; o Purgatório, da purificação; o Paraíso, da graça. Em Sirāt, o Inferno e o Purgatório se fundem, e o Paraíso é negado. A travessia dos personagens é uma descida contínua, um mergulho em camadas de desumanização que não encontram saída.

O diretor cria um marco dessa desesperança, uma quebra brutal, sem redenção possível. É o instante em que a fé se dissolve, e o filme abandona qualquer promessa de luz. Chegando no limite, a perda é filmada sem ornamento, na constatação fria de que não há lugar para a pureza. O gesto de Laxe é o de um Dante sem Deus, ele desce ao inferno, mas não retorna.

Se no livro o Purgatório é esperança, no filme se torna suplício. Os sobreviventes continuam andando, mas cada passo é uma prova de que não há para onde ir. E o purgatório contemporâneo é o próprio planeta reduzido a um deserto em chamas, povoado por danados que resistem porque morrer seria fácil demais.

A escolha simbólica de Laxe dialoga diretamente com o mito dantesco. Sob Jerusalém está o portal do Inferno; acima dela, o caminho que leva ao Paraíso. Mas e quando Jerusalém, cidade sagrada, se torna cenário de guerra? Quando uma rave – festa da comunhão moderna – se transforma em massacre? O filme nunca menciona nada disso, mas cada grão de areia carrega esse subtexto. Sirāt é o espelho do nosso tempo: a fé corroída, o paraíso transformado em campo minado, a santidade suplantada pela indústria da destruição. O inferno voltou à superfície.

Dante atravessou os círculos do inferno para reencontrar a luz divina; Laxe filma para provar que a luz foi extinta. Onde o poeta via ordem, o cineasta enxerga ruína. A escada que levava ao céu foi substituída por uma ponte estreita sobre o nada. E, do outro lado, não há salvação.

A estética da danação

Laxe constrói um cinema que arde. O som ensurdecedor das raves, o ronco dos motores e a respiração dos personagens são matéria de seu inferno. A câmera, em Super 16 mm, vibra entre o realismo e o delírio. As imagens tremem, queimam e desaparecem. Cada plano é uma confissão de impotência.

Mas há também beleza. Uma beleza violenta, quase sacrílega, como a de Dante ao descrever as chamas que envolvem os apóstolos. Laxe encontra poesia no horror, não para sublimar, mas para revelar que o horror é o que resta. O cinema, como a poesia de Dante, ainda pode olhar o abismo sem se cegar.

Quando o filme termina, não há redenção. Não há encontro, nem revelação. Há apenas sobrevivência. Os que restam no deserto são como as almas que Dante deixou à porta do inferno, os indiferentes, os que não merecem nem castigo nem glória. Aqui, são heróis trágicos, pois o simples fato de estarem vivos já é vitória.

O longa mata a esperança, mas preserva a lucidez. E ela é o que há de mais político em sua fábula. No lugar do paraíso, Laxe oferece o mundo como ele é, um purgatório sem saída onde viver é um ato de resistência. Assim como Dante precisou descer ao inferno para compreender a alma humana, o espectador precisa atravessar Sirāt para entender o tempo em que vive. O inferno nunca foi uma metáfora. Ele sempre esteve aqui.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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