- Gênero: Documentário
- Direção: Tamara Uribe, Felipe Morgado
- Roteiro: Colectivo MAFI
- Duração: 74 minutos
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O passado da América do Sul é assustador e compartilhado. Se a barreira da língua é uma questão para tanta coisa, ela não se aplica nos métodos de construção de discurso da extrema-direita, desde os tempos de a Operação Condor até o crescimento desembestado da extrema direita dos dias de hoje. Poderíamos falar de mundo, mas há dois pontos: as particularidades de uma região que sofreu ataques coordenados à sua identidade e soberania, e que até hoje ainda tenta se recuperar de seus efeitos; e o fato de estarmos falando de nossa terra, da nossa casa. Entre as muitas histórias deixadas para trás no no continente, estão os terrores da ditadura que se tentam apagar com democracias improvisadas sobre bases ditatoriais – seja em forma de anistia, funcionamento estatal via legislação.
Em Oasis, num Chile que se enxerga – e se vende – de uma maneira diversa de sua realidade, o coletivo MAFI, com um gesto que recusa o conforto da narração explicativa, investiga um dos eventos sociais mais marcantes dos últimos tempos, indo do princípio da revolta social contra a desigualdade social e a corrupção do governo até o processo constituinte. O documentário nasce de muitas mãos e de muitos olhos. Cada enquadramento parado, distância calculada e silêncio insistente compõe um painel que não quer decidir pelo espectador o que pensar daquele país e daquele tempo, mas nem por isso deixa de ter em si a força da construção e da intenção, ao estabelecer o reflexo de uma apatia. Tamara Uribe e Felipe Morgado assinam a direção em nome de um projeto coletivo que, após Propaganda e Dios, encerra a trilogia sobre uma década de disputa de sentidos.
Vale lembrar a história, onde o estopim do processo são foram as manifestações populares de 2019, lideradas por estudantes após o aumento das passagens de metrô e que se espalharam por todo o Chile com gritos de “no son 30 pesos, son 30 años”. Como não lembrar dos ao nosso “não são só 20 centavos”, não é mesmo? Ali, que muitos perceberam que não se tratava de uma crise isolada, mas de acúmulo de desigualdades, violência institucional e inadimplência de promessas de transformação. A revolta tomou as ruas e chegou a alguns objetivos, mas trouxe com ela manipulação da massa em um processo constituinte que reacendeu um passado que nunca foi adequadamente encarado. Oasis revisita o momento como pulsação política que não se apaga, segue reverberando, exigindo presença e cautela.
A forma é o discurso. Oasis foi pensado a partir de planos fixos, observacionais, captados por realizadores diferentes e reunidos em montagem. Essa multiplicidade sem unidade fotográfica deliberada produz uma textura que ecoa o presente fragmentado das redes sociais e dos feeds imprecisos e de fácil disseminação. O filme alterna distâncias e deixa os acontecimentos ocuparem o quadro sem urgência de close. A uma primeira vista, parece áspero, mas aos poucos, revela método. As peças se articulam como quem monta um quebra-cabeça onde algumas bordas foram perdidas. Essa ética do olhar distante tem história dentro do MAFI e aqui encontra sua síntese ao registrar, do estalo de 2019 ao plebiscito de 2022, uma experiência sócio-política que se perde em sua própria intenção.
Como gesto de cinema, a aposta na montagem multiautoral acerta porque traduz em forma a crise de confiança. A câmera parada que insiste em não intervir cria um espaço de leitura ativa. Cabe a quem vê ligar pontos, reconhecer padrões, sentir o incômodo de uma democracia que se promete participativa e termina esvaziada por dentro. É um procedimento que o coletivo desenvolve há mais de uma década e que aqui chega com a maturidade de quem sabe que o registro é sempre escolha e que a escolha precisa admitir seus limites.
Há uma inteligência incômoda no modo como o filme espelha a apatia. As imagens, quase sempre imóveis e distanciadas, devolvem a sensação de que muita gente observa de longe enquanto a disputa de narrativas acontece. O que se vê conversa com o mecanismo de desinformação que prospera no ritmo rápido e descontínuo das redes. A extrema direita explorou essa velocidade, capturou símbolos, injetou versões emotivas da realidade e manteve a mira constante na desqualificação do processo. Porém, Oasis não grita, faz ouvir a reverberação do grito e os vazios que ele deixa quando a onda baixa. O resultado é um mapa de ruídos no qual o silêncio vira matéria de política.
Como em qualquer obra, mesmo que só reproduza trechos de discursos e performances, não há neutralidade possível. O material reafirma como a retórica da ordem e do medo aprendeu a ocupar o centro do palco. Entre a rigidez conservadora e o excesso de símbolos identitários, a assembleia que deveria ouvir o país se afastou. Oasis não oferece culpados únicos e mostra um jogo onde cada lado erra e acerta, enquanto a máquina de mentira opera em vantagem. Nesse ponto, o espelho com o Brasil é inevitável. Também aqui a ultradireita aprendeu a converter apatia em força, a transformar a pressa da linguagem digital em método de convencimento, a capturar o desencanto como capital político.
Oasis incomoda porque expõe o momento em que as promessas se desfizeram. Sem ser elegia nem triunfo, é o registro de um país que tentou reescrever a própria constituição e descobriu que a disputa pelas imagens é tão decisiva quanto a pela atualização dos artigos. Ao final, fica a sensação de que os planos estáticos dizem mais sobre nós do que imaginávamos. Continuamos olhando de longe enquanto alguém inventa uma nova versão dos fatos, seja por lá ou por aqui. E talvez esse seja o aviso que o filme entrega com mais força. A distância é confortável, mas também pode ser o modo mais eficiente de fracassar.
Um grande momento
O novo Chi-chi-chi le-le-le


