Crítica | Cinema

Visões de Ramsés

Síndrome de Peter

(Goutte D'Or, FRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Clément Cogitore
  • Roteiro: Clément Cogitore, Thomas Bidegain, Fanny Burdino
  • Elenco: Karim Leklou, Jawad Outoui, Yilin Yang, Elyes Dkhissi, Djibril Bouhadi, Malik Zidi, Ahmed Benaïssa, Elsa Wolliaston
  • Duração: 95 minutos

Passeia por Visões por Ramsés a mesma pergunta que está implícita em qualquer produção que narre, no centro ou na periferia, uma história acerca de um médium: esse cara é um charlatão ou um profissional que verdadeiramente tem um dom? Como na maioria das produções, o que temos não é uma resposta simples. O filme, no caso, busca se ajustar a esse questionamento de maneira mais direta, mas a principal discussão aqui nem é esse dado. Existe um valor fabular correndo em paralelo ao que está na primeira linha narrativa, no centro das discussões, que é um desabafo do filme e também uma maneira desconstruída de apresentar novas funções para as narrativas, além das que já foram efetivamente narradas.

O diretor Clément Cogitore tem um arsenal de curtas, mas esse é apenas seu segundo longa, ambos encontraram porto na Semana da Crítica no Festival de Cannes. O que Cogitore realiza aqui não é novo, mas o que está nas entrelinhas de sua direção é sim uma mentalidade menos viciada para o olhar à direção. A coisa mais óbvia seria acusar a direção de abusar dos planos que seguem o protagonista, no que poderia aludir a uma espécie de recolocação da estética dos irmãos Dardenne. O que é ainda mais fascinante é que, tratando-se de uma produção que investiga vertentes do sobrenatural em cena, essa ideia na captura do quadro pode querer trazer qualquer ideia que seja de observação, incluindo uma presença outra nesse palco ilustrado, quase como se fossem criaturas oriundas de outro plano. 

Essa ideia de assombrar o protagonista com uma presença invisível que acaba por fazer parte de sua narrativa particular é uma sacada interessante, vide a narrativa do filme. Pela maior parte da duração de Visões de Ramsés, o filme consegue vender que esse homem parece perseguido, com a câmera sugerindo isso. Essa deve ser das melhores utilizações do recurso já vistas, e garante ao filme uma urgência imediata que o plano propaga. Não é como se fosse apenas mais um tique de autorismo vazio já visto sem crédito em todo longa europeu a estrear. Aqui, o filme corrobora com essa ideia de socializar seu tipo principal com o modo com o qual ganha dinheiro, uma espécie de xamã moderno; que isso seja um negócio rentável e difundido pelas ruas da França, é ainda mais conveniente ao que é e como é produzido. 

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Visões de Ramsés, que começa com nosso testemunhar inicial das práticas de seu homem central, não surpreende ao definir a natureza de Ramsés, muito menos sua virada gradual de um extremo a outro. Até passamos algum tempo imaginando que o filme teria um ponto de partido verdadeiramente original, mas não, estamos diante dessa ideia que vendeu todo tipo de filme, como Ghost, quando poderíamos estar de frente a um O Dom da Premonição. Mas o charme ambíguo, e a formidável interpretação de Karim Leklou, levam a produção a um caráter bem experimental de condução narrativa, que nunca parece estar se comunicando de maneira direta. Talvez porque esse tom fabular já citado, no filme, é um negócio que está saindo do controle de todos. 

É quando percebemos as fortes implicações da obra principal de J. M. Barrie em cena. Ramsés é uma figura tratada de maneira mítica pelas ruas, que tem o domínio da narrativa, vende histórias das quais seu ouvinte anseia escutar, e se sentir mais livre e apaziguado. Lá pelas tantas, o protagonista se envolve com uma trupe de meninos de rua, que passa a segui-lo e acaba por entroná-lo entre os seus. Tá dissecado o universo de ‘Peter Pan’, não é mesmo? A história desse homem adulto que continua se comportando como uma criança e seus amigos em bando é modernizada, trazendo ecos de imigração compulsória, xenofobia e inadequação geográfica, em um fascinante jogo de espelhos entre a fábula que precisa existir e a realidade que destrói qualquer sonho. 

Quando essa metáfora se esclarece, Visões de Ramsés cresce em ambição narrativa, mas o filme nunca tenta vender sua espinha dorsal de maneira leviana. Os périplos do protagonista são tratados de maneira séria e delicada, porque não se trata de um trabalho abordado com frequência, e com os novos acréscimos ainda menos. Sua ideia é solucionada com muita categoria, por um elenco compenetrado e um protagonista em momento especial. Assim se faz um pequeno filme relevante. 

Um grande momento
O pai de Ramsés o abençoa da mesma forma

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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