Crítica | Cinema

Pearl

O cinema e o terror

(Pearl , EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Ti West
  • Roteiro: Ti West, Mia Goth
  • Elenco: Mia Goth, David Corenswet, Tandi Wright, Matthew Sunderland, Emma Jenkins-Purro, Alistair Sewell
  • Duração: 101 minutos

Quem acompanhava com atenção a carreira de Ti West, não foi surpreendido pela chegada de X, um de seus sucessos de 2022. Título como Hotel da Morte e Você é o Próximo já mostravam seu talento, e sua disposição a investigar o horror como um gênero da qual também vale dedicação. Ele, James Wan, Mike Flanagan, Jordan Peele  e outros vêm moldando a forma do que têm chegado nas telas, se debruçando sobre o único gênero que sobrevive independente de elenco, autoria e proposta. Sua ambição como autor cresce exponencialmente nesse novo projeto, uma tríade de filmes que se segue com Pearl, indo buscar a origem da personagem apresentada em X, e que ainda terá mais um capítulo esse ano – MaXXXine. 

É curioso compreender que West pensou essa trilogia como três tomos de proposições distintas, e que esses filmes conversarão a partir dessa protagonista, mas que estarão (ou ao menos estão, até agora) em convenções múltiplas. Enquanto X era uma conversa com o ‘slasher’ através de uma espécie de homenagem à Nova Hollywood, ao O Massacre da Serra Elétrica e ao surgimento de um cinema marginal do horror, Pearl é travestido do clássico. Não apenas do que entendemos como o cinema clássico, aquele surgido no início da arte, mas também ao modelo clássico-narrativo de contar uma história. Isso expande o diretor em sua autoralidade e permite que as obras busquem aproximações sob outros prismas. 

Pearl
Christopher Moss / Origin Picture Show

Pearl então é construído sob esses códigos, desde os créditos iniciais, que remete aos títulos da era de ouro de Hollywood, ao layout de seu título na tela, as indicações são claras. O filme também sustenta essa intenção de tratar-se da apresentação de um universo, com as portas da fazenda onde se passa a narrativa sendo abertas para a produção, de maneira convidativa à produção. Passado em 1918, o filme ainda é uma homenagem à Sétima Arte através de sua personagem-título, que sonha com a ribalta recém-nascida do cinema. Através dos seus sonhos, o filme empreende uma viagem por um mundo de delírios, indo de referências ao ‘noir’ em sua trilha sonora até O Mágico de Oz, em sequência que nasce emblemática. 

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Dos sonhos da protagonista, molda-se a estrutura do longa, que costura suas ambições enquanto melodrama familiar com as do cinema de gênero, conseguindo resultados espantosos. Por entender absolutamente sua zona de origem, West consegue trazer naturalidade para essa passagem, mesmo compreendendo que as eventuais sutilezas são uma marca que precisa ser evidenciada dentro de um produto tão exposto quanto o terror. Mas o diretor compreende tão bem o que pretendia fazer em Pearl, que torna-se fácil identificar a relação da personagem com a vida que leva com algo cruel, e compramos com facilidade sua ideia. É um processo que começa na referências cinematográficas, mas que não demora em mostrar sua relevância social. 

Pearl
Christopher Moss / Origin Picture Show

Pearl e sua mãe são mulheres de 100 anos atrás, logo a castração psicológica e social nem eram ainda tratados como algo inegociável, como é hoje. Duas mulheres cujo embate sistemático revela muitos sobre elas, mas ainda mais sobre a sociedade onde vivem – que, afinal, as moldou assim. Sem direito a sequer sonhar, uma sucumbiu ao que a outra se recusa; como abrir mão de si mesma quando sonhos indomáveis nos arrancam do real? Se sua mãe aceitou sua pena, a protagonista carrega aos poucos uma necessidade fora do comum de ser livre, e poder ser maior do que o que lhe coube. Mia Goth, como já dito por todos, exala essa ferocidade que só conseguimos perceber quando nos é negado algo maior que a vida: o direito de sermos quem nossa natureza ordenou. 

O fotógrafo Eliot Rockett, que concebeu a luz também de X, aqui realiza o trabalho mais impressionante técnico de uma produção que se esmera em tudo que se propõe. Ainda assim, chama a atenção seu salto de um lugar para outro, porque as ideias de West quase rivalizam, entre os dois filmes. Rockett cria a unidade necessária para que se amarrem dois objetos que precisam co-existir de maneira não apenas harmônica, mas complementar acima de tudo. A trilha de Tyler Bates e Tim Williams também contribui para que o cenário seja arremessado para um século atrás, além de comunicar-se com o tanto de material fonográfico produzido no início do cinema. A comunicação aguda com o resto da narrativa constitui um acerto para Pearl, que se estabelece também por conta desses profissionais. 

Pearl
Christopher Moss / Origin Picture Show

Goth, além de protagonizar, se juntou a West para conceber o roteiro, e consegue de maneira exemplar conversar com o contemporâneo através do feminino e da gripe espanhola que em tudo remete à covid-19 (em cenas de diálogos memoráveis, como quando o projecionista de cinema fala que já não conseguimos reconhecer ninguém por causa das máscaras). Mas se Pearl conseguiu tão fortemente comunicar tudo que era humano e metafórico, não conseguiu fugir de um certo clichê de encaminhamento da produção. Não é um rasgo que o inviabiliza, mas é uma marca que se estabelece de maneira indelével. Para um filme que consegue subverter exatamente esses mesmos clichês em cenas deliciosas como a da primeira visita à sala de projeção, onde o filme aponta todos os riscos e se nega a todos, deixar adiante que eles ocupem o espaço é um lamento único a ser feito em obra tão singular, que promete nos impressionar ainda mais esse ano. 

Um grande momento

O embate entre mãe e filha

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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