Série em Cenas

Pedaço de Mim

É novela, sim

Em um momento onde as novelas têm se afastado de sua estrutura e estética, eis que a Netflix volta ao gênero seguindo o que de mais tradicional há no formato. Pedaço de Mim foi vendida no país como uma minissérie de drama mas não passa de um novelão de primeira linha, daqueles de antigamente, onde o melodrama grita a cada minuto dos seus 17 capítulos. No centro de tudo está Liana, uma terapeuta ocupacional que vive uma crise no casamento e está obcecada com a ideia de ser mãe.

A trama, escrita por Angela Chaves, com colaboração com Laura Rissin, Marina Luísa Silva e Guilherme Vasconcelos, acompanha a história, ou melhor, as desventuras dessa mulher depois que ela engravida. Tomando estimulantes de ovulação, isso se dá após descobrir a traição do marido, o que leva a uma separação, e após um estupro. Além da angústia de conviver com a violência, o drama não está apenas em desconhecer o pai, mas na realidade de uma gravidez resultante de superfecundação – quando a mulher engravida de gêmeos de pais diferentes. Isso sem falar em todos os outros dramas que seguem e perseguem.

Com uma narrativa não-linear, que se inicia com o parto da protagonista em condições não usuais, as personalidades apresentam aleatoriamente, mas sem suspense sobre cada um. Não existe aqui nenhuma preocupação com profundidade e tridimensionalidade na construção de personas. O maniqueísmo é um objetivo e ele é alcançado com méritos. Quem é mau é mau de verdade, sem motivos. Do mesmo modo, os bons só cometem atos questionáveis quando há uma justificativa muito forte. Liana é a típica mocinha de folhetins, alguém que sofre do princípio ao fim e parece não ver um final para seus dissabores. Nessa facilidade de definir os traços de identidade, as relações vão se construindo. 

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E o que não falta em Pedaço de Mim são relações, já que todas as pessoas se conectam. Como em toda novela, existem alguns núcleos, com suas sub-tramas e enredos próprios, mas todos eles estão interligados. Isso acontece de maneira facilitada e sem nenhuma vergonha. E se o problema está nos vínculos, está também nos conflitos. Nem tudo tem um desenvolvimento equilibrado e é preciso muita abstração para superar a desproporção ou as muitas soluções bizarras. Outra questão delicada é a resistência em se tratar abertamente o tema central da série, nominando-o claramente, pois trata-se de algo sério e grave que merecia uma outra abordagem, por mais que se tente justificar a postura tomada de alguma maneira.

Porém, estamos falando do magnetismo de um gênero que permeia o imaginário nacional há décadas e de um produto realizado por quem tem intimidade com essa criação, afinal de contas, a teledramaturgia é um formato com o qual qualquer brasileiro convive desde sempre e que já formou vários profissionais. Na direção dos episódios, estão Maurício Farias, Vicente Barcelos, Mariana Clara Abreu e Clara Kutner e uma bagagem que inclui novelas e séries como A Viagem, As Noivas de Copacabana, Hilda Furacão, A Padroeira, Pecado Capital, A Grande Família, Escrito nas Estrelas e Tapas e Beijos. Da experiência, entre as muitas referências para um exemplar express do padrão (e como é bom serem 17 capítulos no lugar de mais de 200), destaca-se a habilidade na criação de ganchos que fazem o expectador não conseguir desgrudar da história, por mais complicadas e questionáveis que sejam algumas passagens e capítulos.

Para ajudar na criação de vínculo com quem assiste à série, o elenco traz rostos conhecidos da telinha como Vladimir Brichta, Juliana Paes, Paloma Duarte, Jussara Freire, João Vitti e Felipe Abib. Com uma atuação propositalmente acima do tom, Brichta rouba a cena como o marido obsessivo e faz milagre tendo em mãos um arco tão absurdo. Já Paes, mesmo que em um papel familiar, surpreende como a sofredora Liana e se afasta de certas marcas que têm pontuado sua carreira até aqui.

Na proximidade com o conhecido e no conforto que isso traz, Pedaço de Mim e seu melodrama puxado conseguem envolver o público. Longe de ser perfeito, ou até mesmo bom de verdade, esse senhor novelão em versão pocket acaba valendo a pena por uma nostalgia que o transcende, por se assumir como aquilo que, em especial depois da chegada do cabo e dos streamings, não se vê mais na TV com esse tempero que é tão brasileiro e que ninguém jamais conseguiu chegar perto de imitar. Com atualizações pontuais, pois o mundo não aceita mais certas coisas, e falhas que fazem do ultrapassado seu estilo, é um daqueles programas impossíveis de resistir e difíceis de abandonar no meio.

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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