Crítica | Festival

Quem Tem Medo de Ideologia?

Uma vida quase utópica de tão imaculada pela masculinidade tóxica

(Who is Afraid of Ideology?, LIB, SYR, KUR, 2019)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Marwa Arsanios
  • Roteiro: Marwa Arsanios
  • Duração: 57 minutos

Uma vila só para mulheres. Não há homens lá (apenas um guarda no portão), contam cinco moradoras de idades variadas, rindo em Quem Tem Medo de Ideologia?. Elas parecem tranquilas mesmo em meio ao caos que impera na Síria, país destroçado por uma guerra civil, fruto da intervenção imperialista e do governo do ditador (morto) Kadafi, que transformou os sírios na principal população de refugiados do século 21. Elas pertencem a um lugar parado no tempo, onde plantam, convivem, criam os filhos.

Memórias do início são ativadas pelo off de uma soldada curda. Parte do maior povo sem pátria do mundo (quase 30 milhões), o grupo étnico do oriente médio que luta por liberdade, terra e paz, ela é parte de um grupo de 40 mulheres que vivem isoladas nas montanhas no leste da Turquia. “Não somos observadores externos do mundo” anuncia a realizadora Marwa Arsanios ainda no prólogo de Quem Tem Medo de Ideologia? . Uma grata surpresa foi essa reflexão documental sobre feminismo, agroecologia, sororidade e pertencimento.

Tanto a filosofia proposta pelo francês Desttut de Tracy quando a denominação marxista, tratam ideologia como as ideias humanas referentes as percepções sensoriais que se tem do mundo externo e a consciência social em suas diferentes formas. Com um adendo: segundo Marx, se avivado o brio revolucionário a ideologia proletária é o impulso para a eclosão do poderio econômico das classes dominantes. Esse ensaio fílmico traduz então, do campo das ideias políticas, o que é estar imbricado nas intra atividades do mundo, ser parte de um todo e também pertencer a uma localidade. O aqui e o agora como complicadores da localização da própria identidade humana.

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Quem Tem Medo de Ideologia?, documentário selecionado para o 9º Olhar de Cinema

Sem grandes firulas de linguagem, Quem Tem Medo de Ideologia? parte de uma abordagem colaborativa para partilhar as vivências dessas e de outras mulheres, como um grupo de refugiadas numa cooperativa libanesa. Mas é nas cenas descontraídas das mulheres da vila, nos relatos da rotina delas e do que é viver sem o peso do patriarcado esmagando seus peitos, tirando o ar e o arbítrio que a força emerge.

Também é belo ver as soldadas curdas tímidas perante a câmera, mas abrindo o coração ao falar da solidão das montanhas – elas estão num local que fica a uma distância de 1 km da vila mais próxima, povoada também por homens – e da certeza do propósito. Estão há três anos nas montanhas de Dersim, lutando, como já bem expressou Angela Davis em seus diversos escritos sobre a causa curda, por uma “democracia radical e imaginativa que nos impele a essa constante batalha por liberdade”.

Quem Tem Medo de Ideologia?

É por um propósito nobre, que deveria inspirar a nossa resistência popular aqui no Brasil – afinal são lutas profundamente conectadas por justiça social e igualdade. Pois o que as curdas e curdos buscam incansavelmente e não só (como se fosse pouco) é conquistar a independência territorial da Turquia, Irã, Iraque e Síria e servir de inspiração para sociedades misóginas. E que hoje, em mais um ato de loucura do Trump, estão em sério perigo por conta da retirada das tropas norte-americanas e do avanço do exército de Bashar al-Assad.

A diretora de Quem Tem Medo de Ideologia? fala em árabe, mas a legenda em inglês traduz o texto e subtexto nesse filme-ensaio. Ela se mostra, fala de um tratado para viver em paz com a natureza – transmitido pela mãe libanesa. Paz essa encontrada nos planos aéreos demorados por sobre uma plantação, um grande campo arado de onde as campesinas sirias extraem camomila, zatta e outras ervas para curas que cicatrizam feridas profundas. É nas mãos habilidosas de uma senhora, preparando e misturando os insumos num chá, que a a ideologia da paz, a narrativa elíptica e sucinta de Marwa Arsanios se encerra. E permanece.

Um grande momento
As conversas animadas sobre uma cidade que não precisa de homens.

[9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba]

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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