- Gênero: Aventura, Drama, Terror
- Direção: Ryan Coogler
- Roteiro: Ryan Coogler
- Elenco: Michael B. Jordan, Miles Caton, Wunmi Mosaku, Hailee Steinfeld, Delroy Lindo, Jayme Lawson, Omar Miller, Yao, Helena Hu, Jack O'Connell
- Duração: 136 minutos
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Certa parcela dos espectadores sairão da sessão de Pecadores com uma pergunta na cabeça: tivemos a plena consciência de estar vivendo o melhor dia de nossa vida quando ele aconteceu? No fenômeno de bilheteria e crítica que acaba de estrear e é um dos maiores do cinema original dos últimos anos, essa é uma questão que surge próximo ao seu fim, entre seus protagonistas. Para eles, esse conceito é ainda mais subjetivo, porque o tal dia em questão debatido é o mesmo para os personagens, e nós testemunhamos tal dia – ele não foi necessariamente um dia exclusivamente bom. Mas entendemos o que está em debate ali, e sobre qual camada essa discussão é levantada; a liberdade, mesmo que fugaz, vale a pena ser vivida no máximo de sua plenitude. O diretor Ryan Coogler sabe disso e vestiu seu filme com essa essência, que é saciada pelos personagens em seu grau máximo.
Coogler construiu uma carreira mais que respeitável, já tendo um filme indicado ao Oscar de melhor filme que se transformou em um sucesso global (Pantera Negra), sido indicado por um outro filme (Judas e o Messias Negro) e criando uma respeitabilidade que poucos cineastas em tão pouco tempo já adquiriram. Mais do que isso até, um grau de confiança da indústria capaz de ter uma produção completamente original repleta de privilégios de direitos, um lugar que ele conquistou. O filme que ele enfim lança e que é o fruto desse trabalho de 15 anos chama-se Pecadores e, mais uma vez, trata-se de um fenômeno de poucos precedentes em Hollywood. Ao assistir o filme, todos recordes batidos passam a ser celebrados, porque é cada vez mais raro encontrar uma produção em larga escala que tenha tanto a dizer.
A escalada de Pecadores se dá em contexto que recria, há 100 anos atrás, uma realidade que não foi alterada em praticamente nada ainda hoje. Os negros (ou qualquer minoria como eles) são odiados por serem o que são, ao mesmo tempo em que suas virtudes são desejadas e virtualmente espoliadas através da existência. Se algum dia essa apropriação foi através do que eles representaram fisicamente, já há muito tempo isso foi substituído pelos seus valores intelectuais de qualquer espécie. Nesse sentido, existe sim uma característica vampírica na maneira como o filme difunde uma ideia até bastante óbvia, mas que precisa ecoar nas discussões de hoje. Porque esse furto se estende pela História, e se ele não cessará de acontecer, ao menos que sua natureza seja perceptível.
Pecadores, se fala sobre a normatização que grupos menos perseguidos têm em apropriar-se culturalmente de outros grupos, também fala sobre a tentativa de reconhecer-se como parte integrante de uma estrutura acolhedora. Não é apenas de afeto que esse olhar é mostrado, mas exemplarmente de reconhecimento de lugar e do oferecimento a uma geografia que contemple grupos que não as tem. Em determinado momento, a dupla de protagonistas gêmeos vividos por Michael B. Jordan se encontra em uma discussão sobre a validade de um feito – por lucro ou por necessidade histórico-cultural? O clube de blues que é palco da ação por grande parte da narrativa é um símbolo do que pode ser mudado, mas também é um polo de resistência e encontro para celebrar a integridade ancestral de um povo.
Além do que é material narrativo – e que é um dos predicados mais sinceros aqui – o longa representa um avanço verdadeiro para Coogler enquanto realizador. Por mais sofisticado que suas obras recentes vislumbrassem, desde Fruitvale Station o cineasta não encontrava um material que pudesse mostrar potencial que nos recordasse de suas evidentes qualidades. Aqui, sem as obrigações de um discurso prévio (que, sim, ele conseguia trazer para a embocadura de suas lentes), existe uma tela em branco que pode ser preenchida com as tintas que bem lhe convém. Isso também promove uma liberdade de gênero a Pecadores, que não apenas se desobriga a representar apenas uma vertente, como passeia por diferentes olhares com desenvoltura e uniformidade, transformando a experiência em uma comunhão de cenários alternativos.
A essa altura, coisas que não deveriam ter vazado, em sinopse e trailer, já são de conhecimento geral – como os desdobramentos sobrenaturais da produção. Porque Pecadores tem uma qualidade rara de não apenas conjurar situações que, em um primeiro entendimento, estariam apartados. E isso vai além do olhar que ele lança sobre o faroeste (e a setorização que o blaxploitation fez do mesmo nos anos 70), ou sobre o musical (inclusive envergonhando outros exemplares recentes), o drama familiar ou essa subdivisão de gênero. Todos esses segmentos também entendem o interesse de sua narrativa, que se apresenta em um roteiro de múltiplas camadas sobre personagens diversos, com vozes que tornam plural o seu discurso. Em tempos onde filmes não conseguem desenvolver uma linha solitária a contento, Coogler montar esse mosaico discursivo tão refinado é uma prova de que ainda existe essa capacidade em alguns autores, ainda mais com a seriedade que tais temas se apresentam.
Para finalizar, é impressionante que cada membro desse elenco compreenda exatamente o poder do que é encenado aqui, e transmita em cada linha de diálogo ou curva corporal essa intensidade. Do protagonista Jordan até o mais uma vez formidável Delroy Lindo, passando pela cada vez maior Wunmi Mosaku (de O Que Ficou pra Trás) e uma surpreendente Hailee Steinfeld (de Bravura Indômita), até chegar no porta-voz do filme, Miles Caton – uma senhora estreia. Pecadores é uma experiência catártica coletiva, e talvez muito de sua força se dê através do entendimento que o cinema promove, a da comunhão, que é nesse balaio de verdades particulares que se encontra o espírito de uma obra tão abrangente em sua universalidade.
Um grande momento
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