Crítica | Outras metragens

Receita de Caranguejo

(Receita de Caranguejo, BRA, 2020)

  • Gênero: Ficção
  • Direção: Issis Valenzuela
  • Roteiro: Issis Valenzuela
  • Elenco: Thais Melo e Preta Ferreira
  • Duração: 20 minutos
  • Nota:

Como lidar com a morte? Comum e inescapável, há dois tipos de mortes: a ausência, quando alguém deixa de existir neste mundo, e a transformação, quando tudo aquilo que se conhecia altera-se para algo que ainda não se conhece. Em Receita de Caranguejo, Lari, uma adolescente calada e distante se encontra justamente entre essas duas mortes. Acaba de perder o pai e de menstruar pela primeira vez. Os sentimentos sobre ambas mudanças não são expressos, mantêm-se com ela.

O início do longa, com um desses documentários sobre a vida animal, reflete a solidão da menina. O canto solitário das jubartes ocupa todo o espaço, inserido vez por outra nas pausas das interações cênicas. Quem divide o ambiente com Lari é sua mãe, que também sofre com a ausência do companheiro e ignora as mudanças da filha. A diretora Issis Valenzuela vai estabelecendo tanto a ausência física, daquele que deixou de existir, quanto a ausência metafórica, na falta de conexão entre as personagens.

Receita de Caranguejo

Seja no espaço limitado do carro ou na amplidão da praia, os dois destacados pelos planos escolhidos, o contato e a troca são mínimos. A compreensão da mãe e suas insistentes investidas são destacadas pelo roteiro. O “novo” ambiente, a antiga casa de praia da família, é o que transforma aos poucos a dinâmica daquela relação.

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O não dito mantém-se, porém, no desvestir-se e no vestir-se de uma figura que tanto marcou e, de alguma forma, sempre vai estar presente, no chinelo esquecido ou nos óculos de sol apropriados, estes uma bonita alegoria de influências sobre o modo de ver o mundo. Valenzuela opta por manter a não palavra também na percepção do novo momento de vida de Lari. Resume tudo em batidas na porta, quando sua câmera já está em outro lugar.

Com a relação estabelecida, o símbolo da mudança é o caranguejo, andando na praia ou amontoado na bacia prestes a ser cozido. A simbologia por trás do crustráceo é vasta e pode levar a vários caminhos de representação diferentes. Seja a mudança do caos ao firmamento, se na mitologia grega, ou no arrependido Lupã em busca de sua Yaramey, na mitologia Tremembé. Entre ambas, a morte homenageada e a infinita procura, está o caminhar, o transformar-se.

A diretora afirma e reafirma essa transformação graficamente, com elementos que contrariam a abordagem naturalista escolhida até então. Os sons se unem a cores e luzes e os bichos vão transformando-se assim como a própria Lari. Em saltos narrativos, da mitologia parte-se para outra associação, muito mais terrena e usual: da morte cruel à comunhão, o fazer, estar e comer juntas. É assim, com uma tecelagem fina e cuidadosa, que Receita de Caranguejo fala de tradição, memória e mudança de uma forma muito simples e marcante.

Um grande momento
Corte no dedo.

[48º Festival de Gramado]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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