- Gênero: Drama
- Direção: Alice Diop
- Roteiro: Alice Diop, Amrita David, Marie N'Diaye
- Elenco: Kayije Kagame, Guslagie Malanda, Aurélia Petit, Valérie Dréville, Xavier Maly, Thomas de Pourquery, Robert Cantarella, Salimata Kamate
- Duração: 120 minutos
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Alguns textos são difíceis de escrever, outros são praticamente impossíveis. Alguns precisam de alguns dias de internalização, outros precisariam que fôssemos outra pessoa, literalmente. O que sou? Homem. Branco. Cis. Sem pedir desculpas, tento entender meu próprio lugar diante de Saint Omer, legado que Alice Diop nos fornece com humildade, mas sem abrir mão da força que emprega em cada uma das poucas cenas – grande parte delas, em grau de imensidão que o Cinema não comporta. Mas não há desafios intransponíveis para um trabalho cuja imersão exige radicalidade, porque não estamos diante de uma obra estanque. O contrário é real, e com toda a empatia e nenhum lugar de fala, me ainda me debato com seus desafios, 36 horas depois de sua sessão.
Não me sinto diminuído por dizer que contribuíram com esse texto, direta e indiretamente, diálogos com o amigo cinéfilo Lucas de Marco e a leitura obrigatória do brilhante colega Bruno Carmelo para que minhas sinapses pudessem ser organizadas. Diante de dois intelectuais como esses senhores, me senti enfim mais preparado para o desafio de sentar-me diante da obra de Diop, e tentar decifrar sua severidade narrativa. Há um convite digno que nos é feito através daquela noite, tão preta quanto suas protagonistas, e que esconde um flashback fugidio sobre algo que nos será exclusivamente relatado. Infanticídio não é um tema recorrente do cinema, e mães capazes de tal abominação com os filhos, também não é algo comum. Diante de algo que poderia ser tão excessivamente dramático, a cineasta nos encerra diretamente com a palavra. E com os olhos.
Diop declara em cena que não há imagem capaz de ser mais eloquente que o discurso, e em Saint Omer é reconfigurado o direito do espectador justamente à imagem, tão determinante no cinema. Porque elas são produzidas, gradativamente, mas elas estão sendo montadas na frente dos nossos olhos, a partir de um depoimento que parece não ter fim. Em contraponto à palavra, o corpo e suas armadilhas; a face, e seus olhos que revestem a ação. Se estamos aqui no terreno da fabulação, onde o processo é definido pelo verbo, tal intensidade será integrada ao escopo do plano quando suas protagonistas permitirem determinada colocação em cena, serem acessados. A ré de um julgamento é movida pela palavra, seu rosto impassível é capaz de definir o quanto seremos sugestionados; a espectadora de um julgamento é desenhada pela concisão verbal, seu corpo é o veículo para o lado que o roteiro permite. O reflexo entre ambas, que parece distante, é desenvolvido e assimilado – ora são lados diferentes de uma mesma moeda, ora filhas de um sistema que direciona seus excluídos para o mesmo certame.
Nem Rama nem Laurence têm direito à liberdade, embora só a segunda pareça em vias de perdê-la de fato. Saint Omer usa a conexão percebida de uma para com a outra como uma ponte de leitura do lugar de direito que estão pessoas na sua pele: mulheres pretas, ainda que intelectualmente avantajadas, emocionalmente esclarecidas, serão ainda periféricas, estejam em qual papel for. O roteiro escrito a seis mãos está sincronizado com a direção, que aponta tais elementos na mesma medida em que não diminui seus corpos ou os subtrai de cena. Kayije Kagame e Guslagie Malanda se elevam em seus planos porque o filme as entende como força motriz, e porque deve existir alguém que retire da marginalidade uma mulher que perceba e escolha para si saídas diferentes do que a sociedade lhes dispõe, e efetivamente encurrala como única saída. Esse é apenas um dos recortes geniais do trabalho de Diop, traduzindo a relevância do seu texto para a reinterpretação desses corpos também no trabalho imagético.
É sintomático que Saint Omer seja um filme sobre um julgamento de uma(s) mulher(es) preta(s), e praticamente tudo que as cerca sejam avanços da branquitude. Seja no foro íntimo, com seus companheiros sendo homens mais velhos brancos, à todo arsenal presencial do julgamento, e principalmente as figuras mais poderosas da corte, advogados e juíza. É como se todos em cena tivessem as respostas certas para doutrinar aqueles corpos, para o bem e para o mal, e que, em sinal de protesto, se recusam a receber o cabresto que lhes foi outorgado a partir de seus nascimentos. É de uma beleza sem igual observar a imponência de suas duas esfinges, que não estão prontas para responder o que querem ouvir, e nunca tantos ‘eu não sei’ foram tão eloquentes; porque só as vozes brancas têm direito a não saber?
Diop também compreende que as imagens que poderia reproduzir, de violência física ou psicológica, estão sendo criadas e elaboradas continuamente no que filma, e em como filma. Saint Omer, em sua aparente impermeabilidade, absorve de suas duas protagonistas mais do que seus olhares diante do que não conseguem elaborar, mas dessa secura fazer nascer uma implosão de verdades, que não se aplicam ao longa. Não importa muito o que é esclarecido, mas o quanto cada uma das costuras apresentadas, cada um dos detalhes de cada uma delas, é exposto. Seja no aparente conforto sensorial que Laurence obtinha, ou na fuga afetuosa empreendida por Rama, também não importa compreender porque elas agem nessa direção ou naquela, mas que seja dado a cada uma o direito inalienável negado até hoje, à sua geração, às anteriores e às próximas: o de poder escolher seu destino.
Um grande momento
O discurso da advogada