Crítica | Streaming e VoD

Sem Filhos

Discussões abortadas pela leveza

(Sin hijos, MEX, 2020)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Roberto Fiesco
  • Roteiro: Mariano Vera, Anaí López, Pablo Solarz
  • Elenco: Alfonso Dosal, Regina Blandón, Francesca Mercadante, Jorge Muñiz, Miguel Jiménez, Michelle Rodríguez, Gustavo Egelhaaf, Giovanna Zacarías, Christian Ramos, Ela Velden
  • Duração: 95 minutos

Uma semana depois de lançar o infanto-juvenil Dia do Sim com imenso sucesso em sua plataforma, a Netflix apresenta uma opção mexicana para paladares afins ao da produção americana, com alguns toques mais maduros em sua premissa, porém apesar desse Sem Filhos também corresponder com aceitação popular, o filme percebe-se em encruzilhada ao tentar agradar tanto os adultos envoltos em situações complexas envolvendo seus filhos, quanto a faixa etária jovem, que é sistematicamente negligenciada pela produção até se tornar quase um lembrete incômodo da narrativa, que precisa ter prosseguimento mesmo sem abraçar sua protagonista mirim a contento.

O diretor Robert Fiesco está aqui estreando no cinema de ficção e tem pouca experiência em longa metragem, e ao observar os créditos de roteiro e constatar que sua produção contou com DEZESSEIS mãos na feitura (incluindo as suas), as incongruências, inconsistências e amadorismos de visão de mundo presentes no mesmo tem provável forte ligação com essa situação de enxame de profissionais em cima de uma única função. Ao longo da projeção, essas características se fazem presente a todo tempo, em cenas absurdas sob inúmeros aspectos, mas que o filme as vende como possíveis. Ainda assim, há um visível capricho de Fiesco na composição das imagens, não salvas pelo roteiro.

Sem Filhos

A própria criação dos personagens, que são desenhados pelo tempo físico no qual estão inseridos, é errônea, com ambiguidades vazias e despropositadas sendo criadas para cada um deles. Um pai que ama a filha, mas que abre a mão dela na primeira oportunidade de “foda rápida”, uma mulher que odeia crianças e declara isso aos berros dentro de um restaurante – uma mulher adulta que vinha sendo descrita como um ser humano normal, de construção até naturalista – e uma criança literalmente negligenciada por pai e mãe, inteligente suficiente para elaborar um plano entre adultos, mas que não se abala com o descaso para consigo.

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A questão que envolve essa personagem inclusive, a pequena Ari vivida pela expressiva estreante Francesca Mercadante, é a que mais salta aos olhos na produção, a ponto de ultrapassar a espinha dorsal, que é justamente a tentativa de apagamento de um grupo de pessoas (seu pai, mais precisamente) da sua existência, a ponto de contaminá-la e a própria menina se apagar, literalmente. Se isso não é o ponto de partida para anos de análise causados por rejeição coletiva, não sei mais o que é… mas o filme, com essa narrativa plus em mãos, joga fora toda uma discussão por um ponto central que se desfaz em meia dúzia de cenas, afinal a protagonista não odiava crianças tanto assim!

Sem Filhos

Em determinada cena, bem posterior ao ataque no restaurante, Marina faz então a revelação de sua relação com filhos e a possibilidade de tê-los, expondo assim uma pressão ancestral que o feminino sofre na direção da maternidade, e mais uma vez o roteiro decide apenas pincelar uma questão definitivamente crucial e diminuir uma fala muito premente na sociedade hoje, mas não a troco de avançar questões outras do próprio filme, mas sim para encerrar o assunto, deixando na expectativa de discussão algo que faria bem a narrativa, não agrediria seu público-alvo e ainda traria coerência a trama – tudo isso abortado pela gana do filme em não ser minimamente problematizado.

A sensação, ao final de Sem Filhos é de frustração, e compará-lo a Dia do Sim se torna uma tarefa lógica. Enquanto no longa de Miguel Arteta o descompromisso só mostre que certos filmes abdicam de fabulação reflexiva pela própria natureza das suas intenções, o filme de Fiesco simplesmente entende seu potencial, prova de suas ideias, explora um material possível, mas sai deliberadamente de debates mais intensos, em nome de um conforto que nem provoca tanta graça assim, dada às suas origens enquanto produto cinematográfico, ou seja, um desperdício.

Um grande momento
A conversa entre pai e filha sobre Marina

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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