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Sonhos de Trem

Vidas ordinárias

(Train Dreams, EUA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Clint Bentley
  • Roteiro: Clint Bentley, Greg Kwedar
  • Elenco: Joel Edgerton, Felicity Jones, Clifton Collins Jr., Kerry Condon, William H. Macy, Nathaniel Arcand, Alfred Hsing, John Diehl, Paul Schneider, Will Patton
  • Duração: 102 minutos

Existe uma vida sendo moldada pela repetição, pelo trabalho e pelo silêncio. Sonhos de Trem parte do gesto simples e rigoroso de acompanhar um homem que atravessa o tempo sem jamais ocupar o centro do mundo. Voltando a um movimento de cinema batido, que parece desgastado, o filme de Clint Bentley busca Robert Grainier como quem observa uma paisagem em mutação lenta, entendendo que ali há apenas sobrevivência.

A felicidade, quando aparece, é frágil e breve. Um casamento, uma filha, a promessa de uma casa. Tudo é construído com o mesmo cuidado com que pode desaparecer. O longa insiste em mostrar que nada ali é garantido. A vida de Grainier é atravessada por forças maiores do que ele, seja o avanço da modernidade, a violência da natureza ou a brutalidade do trabalho. O trem não é símbolo de progresso glorioso, mas de deslocamento constante, de um homem sempre a caminho de algum lugar.

Joel Edgerton compõe esse personagem em deslocamento. Seu corpo é ferramenta e não discurso, pois o silêncio é a forma possível de existir num mundo que não pede opinião. Sonhos de Trem entende que há sujeitos para os quais a interioridade não se manifesta em palavras, mas em permanência. O filme respeita isso e nunca tenta traduzi-lo para o espectador.

O trauma atravessa a narrativa sem catarse. A perda chega de modo abrupto e irrecuperável, e o que vem depois é a continuação e não a reconstrução. Grainier segue vivendo porque não há outra alternativa. O luto não se elabora e nem se incorpora. Não há lição ou redenção, há apenas o tempo avançando e um homem tentando acompanhar. O filme recusa qualquer ideia de superação como aprendizado. 

Visualmente, o longa aposta na contenção. A paisagem é a extensão do estado emocional do protagonista. A natureza se impõe. O isolamento surge como condição e vem marcado nas escolhas estéticas. O mundo de Sonhos de Trem não é indiferente, e é essa indiferença que estrutura o filme.

O trem, que atravessa o título e a vida do protagonista, carrega um paradoxo. Ele liga territórios, mas afasta pessoas; constrói o país enquanto apaga indivíduos. Grainier ajuda a erguer uma ideia de nação da qual nunca fará parte plenamente. O longa observa isso deixando que a própria duração da narrativa revele o esvaziamento progressivo daquela existência.

Sonhos de Trem é sobre o que sobra quando tudo passa. Não há nostalgia nem romantização do passado. Há um olhar atento para uma existência que não entrou para a história, mas sustentou o mundo como ele é. Ao permanecer com esse personagem até o fim, o filme recusa o espetáculo, recusa o épico, recusa a exceção.

O que fica é a sensação de ter acompanhado uma vida inteira sem jamais dominá-la. Embora o modelo de cinema esteja gasto, o gesto de Bentley entende que algumas histórias não pedem clímax. E explica que, às vezes, sonhar não é projetar o futuro, mas apenas seguir em movimento.

Um grande momento
“Elas simplesmente não vão voltar”

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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