Crítica | Festival

Resurrection

Arqueologia do sonho

(Kuangye shidai, CHI, FRA, EUA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Fantasia
  • Direção: Bi Gan
  • Roteiro: Bi Gan
  • Elenco: Jackson Yee, Shu Qi, Mark Chao, Li Gengxi, Huang Jue, Chen Yongzhong, Guo Mucheng, Zhang Zhijian, Chloe Maayan, Yan Nan
  • Duração: 160 minutos

Há filmes que pedem entrega antes de qualquer explicação. Resurrection abre as portas pela sensação: uma luz que parece aprender a respirar, o tempo que se dobra, um espaço entre sonho e matéria onde a imagem volta a ser corpo, como lembrança em movimento. Não há qualquer preocupação com pressa; interessa o modo como a câmera tateia o mundo como se buscasse um idioma antigo, quase esquecido, e a cada gesto reensinasse o olho a ver. Assim, a história futura de uma humanidade que abdicou dos sonhos para alongar a vida vira premissa, e o cinema pergunta o que resta do humano quando se renuncia ao risco de sonhar.

Há no filme algo de arqueológico e algo de profético. Bi Gan remonta ao passado da linguagem e projeta o futuro de uma arte à beira da extinção. Quando a narradora (uma serena Shu Qi) fala a um corpo adormecido, reativando-o ao recitar camadas da história chinesa, a cena se desloca do diegético para o nosso lugar de espectador. É a imagem tentando devolver o assombro a quem desaprendeu a sonhar. A fábula tecnológica vira rito de ressuscitar o olhar, um chamamento para atravessar um século de cinema e de memórias.

Resurrection se organiza em blocos que respiram diferente, como se cada capítulo descobrisse um modo novo de existir, indo do fantasmagórico de cinema mudo à vertigem contemporânea, das texturas opiáceas dos antros de sonho à vibração quase documental dos espaços urbanos. A figura que reencarna através de décadas (Jackson Yee), costura as eras como se o próprio ato de sonhar fosse uma heresia contra a imortalidade decretada, uma insistência em morrer um pouco para continuar vivendo. Essa lógica de transfiguração desloca o foco do “o que acontece” para “como a imagem sente” e cada plano passa a funcionar como escavação do invisível, uma arqueologia do desejo e da memória.

Há, também, uma delicadeza política na escolha de contar o século a partir de estilhaços. O que se narra não é apenas um mundo em mutação, mas a própria imagem ferida pela técnica, pela mercadoria, pelo esquecimento. Paradoxalmente, é nessa ferida que ela reencontra calor.

A cada reencenação de época, a mise-en-scène troca de pele sem perder a continuidade interior. No lugar da pureza de estilo, busca-se o contágio, aquilo que persiste quando a forma muda. E, se a narrativa por vezes parece oblíqua, a coerência afetiva mantém o fio, a experiência pede que se aceite o escuro até que a visão se ajuste. O som não é um enfeite, ele atravessa. A trilha de M83 vem de dentro das imagens, mudando conforme a matéria visual se transforma, numa partitura camaleônica que aceita o delírio e o silêncio, o êxtase e a espera. Em vez de explicar, a música prolonga a experiência, aquela vibração do que não tem palavra e sequências que preferem o transe ao comentário.

Não há moral, nem lição. Há luto e promessa: luto pelo que a imagem perdeu quando desistimos do sonho e promessa de que ainda é possível renascer, não como espetáculo, mas como experiência. Quando a tela escurece, permanece um tremor antigo, o mesmo que acompanhou as primeiras sombras projetadas. É esse tremor que Resurrection provoca, não para explicar o cinema, mas para devolvê-lo ao seu lugar.

Um grande momento
Na sala de espelhos

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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