Crítica | Festival

Toda Noite Estarei Lá

Nunca foi sobre religião, não é mesmo?

(Toda Noite Estarei Lá , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Suellen Vasconcelos, Tati Franklin
  • Roteiro: Suellen Vasconcelos, Tati Franklin
  • Elenco: Mel Rosário
  • Duração: 70 minutos

Há seis anos atrás, o diretor Thiago Moulin lançou o curta Toda Noite, Estarei Lá, com breves 11 minutos. Ao acabar a sessão do quase homônimo Toda Noite Estarei Lá (agora sem a vírgula), longa que nasceu da semente plantada em 2017 por Moulin que retorna como produtor, a pergunta é: como encapsular Mel Rosário em 11 minutos? Confesso, não assisti ao curta, mas o longa de pouco mais de 70 minutos já deixa no espectador a sensação de ‘quero muito mais’ em relação a história dessa mulher indomável. Na competição nacional do Olhar de Cinema 2023, o filme consegue uma proeza que é para poucos – estar à altura de uma personagem tão imensa, e conseguir fazer jus ao que ela imprime na tela. 

Se nas décadas de 70 e 80, o ‘Globo Repórter’ deu a oportunidade de grandes cineastas transformarem matérias jornalísticas em cinema de primeira grandeza (como Eduardo Coutinho em Theodorico, o Imperador do Sertão, e Retrato de Classe, de Gregório Bacic), o ‘Profissão: Repórter’ pode estar, hoje, formando um novo olhar para o documentário. Falo isso sem qualquer preconceito, porque acho que alguns grandes momentos foram conseguidos na última década pelo programa comandado por Caco Barcellos, dignas de constar em qualquer grande filme. Toda Noite Estarei Lá não é uma criação direta mediada pelo exemplar jornalístico, mas mesmo que não conte com inspiração direta, seu registro vem embebido de um manancial difundido a partir do olhar surgido dentro do programa. 

Repetindo, não tenho qualquer outro interesse na citação que não o de observar isso como um possível fenômeno que pode ganhar espaço no futuro – ou não. Seja como for, Suellen Vasconcelos e Tati Franklin chamam a atenção com muita propriedade nessa estreia em longas, e uma lupa para seu próximo já se faz necessária. Não é apenas a ideia de ter encontrado uma personagem fascinante em tantos âmbitos, mas de principalmente saber o que fazer com as imagens que ela compõe, saber extrair dela as melhores informações, de nunca invadir uma linha tênue de confiança com a imagem, ao mesmo tempo em que formatam um quadro de difícil organização. Toda Noite Estarei Lá, a despeito de provocar no espectador uma sede por mais, tem a duração certa. 

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Isso é fruto da montagem impecável a cargo de Franklin e Shay Peled, que coloca na tela tudo que precisamos saber sobre Mel. Sua relação de ambiguidade com a mãe (quem acha que tudo ali é tão intocado quanto as delicadas cenas de carinho genuíno entre as duas mostra, não deixe de prestar atenção na última cena dessa parceria, nos pronomes que a mãe usa), os diálogos sucintos e de profundo respeito com seu advogado, a forma como Mel é vista e tratada pela vizinhança. Não é fácil segurar a emoção diante da veracidade com que essa estrutura é colocada à prova, e como a personagem corresponde ao que está na pauta sempre com o máximo de correção. Mesmo com algumas roteirizações, Mel rende sempre além do esperado, e entrega tudo na medida, resultado de um trabalho que as diretoras estabeleceram entre ela e a imagem. 

E se tem algo que Toda Noite Estarei Lá aproveita de maneira irretocável é o quanto Mel, como personagem, é um poço de possíveis contradições, aos olhos da sociedade, e exatamente por isso é tão demasiadamente humana. Mel Rosário é uma mulher trans que luta pelo direito de… ser evangélica, logo uma das religiões que mais atacam a população LGBTQIAP+, responsáveis por tantos crimes de ódio e incitações à violência, e mesmo depois de ser arrastada para fora de um “templo”, Mel ainda quer frequentar o espaço. Exatamente esse espaço, e por isso briga na justiça. A religião na vida dessa mulher é tão avassaladora, e o filme mostra isso da maneira mais isenta possível, sem qualquer julgamento. Agora vejamos, uma mulher trans, que é evangélica, e que também é a favor do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva; a verdade é que Mel é um achado, e Franklin e Vasconcelos (e Moulin) sabem disso, e realçam todos essas possíveis curvaturas com elegância, com parcimônia, e com justiça. 

Franklin também é responsável pela fotografia de Toda Noite Estarei Lá, que também é um caso especial, principalmente por se tratar de um documentário. Há um cuidado na construção plástica do filme, que só contribui para realçar a ideia da narrativa, como quando a equipe vai à primeira vez tentar entrar na audiência, não consegue e vemos a instabilidade da câmera mostrando seus profissionais. Isso realça o momento onde o filme se encontra, precisando reinventar uma saída pra si, e está presente em todo o pensamento do filme. O resultado é um encontro raro entre personagem, que eleva qualquer conflito em que se colocar, e equipe que o acolheu, saindo todos com a sensação de dever, cívico inclusive, cumprido. 

Um grande momento
A benção da mãe (que desdobra um ‘novo filme’ na reta final do filme)

[12º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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