Crítica | Festival

Cais

Deixando-se sentir

(Cais, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Safira Moreira
  • Roteiro: Safira Moreira
  • Duração: 68 minutos

O luto nunca se organiza em linhas retas, é feito de idas e vindas, de fragmentos que parecem se contradizer, de lembranças que surgem quando menos se espera. Em Cais, Safira Moreira traduz essa experiência em cinema, sem recorrer a ordem, lógica ou hierarquia. As imagens se permitem ser dispersas, assim como o corpo que sente e a mente que tenta elaborar o irreparável.

O filme é pessoal, um retrato da dor íntima da diretora, mas se amplia para tocar o universal. A ausência que se impõe não é apenas dela, é também de todos que já viveram a despedida, a incompletude, a falta. O cais do título, espaço de partidas e esperas, funciona como metáfora desse tempo suspenso, onde o que se perdeu ainda insiste em permanecer e o que está por vir não encontra caminho.

A forma do curta reforça esse estado. Fotografias, fragmentos de vídeo, sons dispersos, silêncios: não ha encaixe perfeito, porque o luto não oferece coerência. A mistura de registros é mais do que recurso estético, é tradução de um afeto que não encontra palavras suficientes. A narrativa se faz no vazio, nos espaços entre uma imagem e outra, no peso do que não pode ser mostrado.

Ao recusar o padrão e buscar o fluxo, Cais se aproxima daquilo que é mais difícil de nomear. Cada corte, cada composição, cada palavra que chega de fora e cada hesitação da câmera sugere que a tentativa de organizar a dor já é, por si só, um gesto de resistência. O filme não impõe ritmo, convida o espectador a partilhar de um tempo outro, mais lento, onde cada detalhe está cheio de significado.

No fim, a experiência é sentir como o luto reverbera e a ancestralidade se perpetua, a energia de quem partiu não se dissipa. O íntimo se transforma em coletivo, a memória pessoal encontra eco em outras memórias. Safira Moreira faz do cinema não um espelho, mas um espaço de comunhão, onde a ausência deixa de ser só dor e se torna também permanência.

Cais é, assim, filme-rio e filme-ferida. Uma obra que encontra sua força justamente na recusa de simplificar o que é complexo e na coragem de expor, sem disfarces, a vulnerabilidade do luto. O que resta não é explicação, mas a experiência de ter partilhado a travessia.

Um grande momento
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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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