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Orion e o Escuro

Medo de não existir

(Orion and the Dark , EUA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Sean Charmatz
  • Roteiro: Charlie Kaufman
  • Elenco: Jacob Tremblay, Paul Walter Hauser, Angela Bassett, Colin Hanks, Mia Akemi Brown, Carla Gugino, Matt Dellapina
  • Duração: 85 minutos

Me pego pensando, às vezes, se as animações de hoje, cada vez mais sofisticadas e adultas, e menos pensando em restringir às crianças suas narrativas, ainda podem ter o pensamento nelas em sua aparência – ou o quanto esse grupo pode rejeitá-las, depois de uma ligeira provinha. Porque a Pixar, a Aardman, o Studio Ghibli, a própria Disney, focam seus roteiros em personagens infantis como protagonistas, muitas vezes. No máximo tratam-se de personagens infanto-juvenis, vivendo aventuras abstratas ao redor de suas emoções, de seus sonhos, da sua imaginação, do corpo humano, de inanimadas figuras que ganham vida. Sim, existe um didatismo sobre porque essas histórias estão sendo contadas, elas buscam o conceito de ‘moral’ oriundo das fábulas, e acabam por encontrar nesse molde a argamassa para formar seu argumento. Chegamos então a Orion e o Escuro, estreia de hoje da Netflix e mais um exemplar do gênero “as crianças capturam tudo o que essas produções que, em tese, são para elas?”.

Adaptado do livro de Emma Yarlett por, vejam só!, Charlie Kaufman – ou seja, as animações ultrapassaram os limites da experiência fabular infantil para assumir um aspecto surrealista – e dirigido pelo estreante Sean Charmatz, Orion e o Escuro tem como base muito do que temos visto em animações ultimamente. Talvez esse movimento tenha se inaugurado com Toy Story há quase 30 anos: há vida entre as coisas sem vida? Isso é essencialmente um pensamento que a inocência infantil (que podemos guardar em nós, ou não – vide o amigo imaginário de Divertidamente) nos entrega, o de imaginar algo parecido com uma existência vital em todas as coisas, e não apenas nelas. Já vimos nos anos as emoções ganharem vida, os elementos, os brinquedos, os insetos, as caixas, e, porquê não, dar consciência também aos medos, especificamente àqueles relacionados ao fim da claridade diurna? 

Se o conceito é basicamente o mesmo – existe vida no que é abstrato – o que faria então de Orion e o Escuro uma experiência nova, interessante e instigante, que motive o espectador para além do infantil de conferi-lo, é exatamente o que ele desenvolve no caminho para a moral da história, também esse um conceito inerente às animações. Não está no título do filme, mas é muito clara a ideia de que precisamos enfrentar o que nos aflige, e começar a encarar o medo como uma parte integrante da vida, tal qual a coragem. De maneira muito mais honesta e bem escrita que esse texto, o filme não martela burocracias didáticas na cara do seu público, e sim o rodeia de soluções tão abstratas quanto o que compõe seu campo de personagens. Além disso, não dispensa uma vontade de homenagear um clássico do horror por mais de uma vez – Poltergeist é uma referência que já discutia esses temas no início dos anos 80, e aqui está imageticamente agraciado. 

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O medo de que está falando Orion e o Escuro, na superfície, é esse mesmo, mais prático, que dá conta das coisas intangíveis que regem a noite – a escuridão de fato, a insônia, os sons desconhecidos, os pesadelos (e também os sonhos). Se investigarmos ainda mais profundamente o que está sendo dito, podemos chegar a um outro âmago: o pavor real aqui discutido é o do desaparecimento, e da percepção de que não há qualquer relevância na nossa existência. Já vem de Charles Dickens a nossa vontade de entender o mundo sem nós, como se configuraria um estado de coisas que nos abrigou a partir do momento onde não estaríamos mais ali. Essa ideia volta com força aqui, porque seu protagonista sonha em passar despercebido… mas e se sua existência rendesse frutos garantidos, ainda assim ele sonharia em não estar? 

Todos nós desejamos fazer a diferença, e passar por qualquer estágio de maneira incólume é realmente amedrontador. Orion e o Escuro constroi essa ideia do desejo de pertencer, de fazer conexão real e complementar outras existências, é o que moveria grande parte da humanidade. Em resumo, é como se estivéssemos eternamente procurando uma chance de amar e ser amados, mas principalmente que esse amor seja também algo particular. Amor próprio vindo acima de tudo, isso definiria grande parte da significância de nossas histórias. São muitas camadas que levam a conclusões muito adultas em relação a condições humanas que, além de tudo, obviamente só serão cobradas pelos nossos ‘eus’ adultos. 

Como mais uma vez não sabia nada sobre o que iria ver, fez todo o sentido ao assistir nos créditos finais o nome de Charlie Kaufman. Ainda que o conteúdo de Yarlett já coubesse os temas de onde o filme extrai suas discussões, principalmente a reta final, onde o filme se transforma em uma boneca russa, fechando dentro de si tempos e personagens em suas próprias existências, é a prova de que o profissional certo foi encontrado para a adaptação. Mais uma vez, chegamos ao fim de uma animação com tanto maravilhamento quanto desejando deitar em posição fetal, e Orion e o Escuro com certeza nem será o último a fazê-lo. Porque vencer os nossos medos, e até eventualmente fazer deles nossos aliados, é uma das armas da vida adulta para crescer e provar as delícias de ser relevante. 

Um grande momento

O último sonho de Orion

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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