Crítica | FestivalFestival de Berlim

Marco Nanini na Berlinale em “Greta”: Um gigante e um gentleman

A mostra Panorama da Berlinale sempre foi o solo dos filmes ART-House e igualmente imprescindível e bem-vinda plataforma para cinema de países com governos antidemocráticos e janela para os filmes com temática LGBT, filmes estes que conquistaram mercados a partir da visibilidade alcançada em Berlim. Diretoras e diretores desconhecidos saem daqui e voam pro mundo.

A lista contendo seus nomes extrapolaria o espaço desse texto. Porém, dois filmes ficaram impregnados na minha memória e lá continuam até hoje e, somados a outros, alimentam e mantêm jovem a minha paixão por essa mostra que completa 40 anos. São eles: Paris is Burning (1990), da diretora Jennie Livingston, e The Watermelon Woman (1996), da também americana Cheryl Dunye. O exemplo não é sintomático para um filme de país antidemocrático, já que as duas diretoras são norte-americanas, mas os dois longas estavam à frente de seu tempo e, neste quesito, a mostra Panorama não perdeu nada no ano de aniversario redondo na edição de 2019.

Em conversa informal com a diretora da mostra, a espanhola Paz Lázaro, enquanto ela esperava pelo elenco do filme, ela mostrou grande preocupação com a situação atual do Brasil e garantiu que isto não influenciará nada “a escolha dos filmes”.

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O filme brasileiro tem sempre lugar cativo na mostra onde se encontram pérolas do cinema mundial, e os diretores que vêm a Berlim encontram o melhor público possível: crítico e esfomeado por novas aventuras cinematográficas. Com o filme Greta, isso não é diferente. Pena que na moderação na madrugada de 12 de Fevereiro, o moderador não alcançou a importância histórica daquele momento. Com 40 anos você alcança a plenitude da vida e faz parte dela estar atento ao cenário que está à sua volta.

Mesmo sem atuar para a mostra, eu sempre ofereço aos moderadores informações importantes sobre os backgrounds dos filmes, para que eles passem essa informação à plateia. Um exemplo: o filme Como nossos Pais trata de conflito de gerações. Ao assistir esse filme na cabine, eu avisei para o então moderador que essa frase espelha toda uma geração e que é motivo de reflexão sobre quem lutou contra a Ditadura Militar. Na hora do Q & A, ele não estava presente e foi a manager da sala do cinema que lançou esse detalhe na discussão. Que desperdício!

Todo o começo é mágico!

A frase (Jedem Anfang wohnt ein Zauber inne) é do poeta alemão Hermann Hesse e essa mágica está presente no primeiro longa do diretor Armando Praça. Digamos que iniciar a carreira com um filme exibido na mostra mais relevante para a temática LGBT não fosse o suficiente para colocar na vitrola (ou na playlist do Spotify) “Perfeição” da Legião Urbana. Suponhamos ainda que exibir o filme em Berlim, cidade gay assumidíssima e no festival mais político do mundo, também não trouxesse a tal da felicidade. Mesmo que tudo isso não fosse mágico o suficiente, ter o Le Grand Segneuer do teatro brasileiro no papel principal, não tem preço. Em conversa informal na festa de confraternização da Mostra Panorama, respondendo minha pergunta de como foi a contratação dele para o papel principal: “Ele foi na minha casa”, disse Marco Nanini, referindo-se a Armando. Olha isso! Um diretor que ainda vai à casa do ator, conversa, instiga, convence na marcação mano a mano. Craque!

No Brasil a palavra “mito” está sendo usada de forma igualmente irresponsável e inflacionada por medianos para acéfalos e pessoas, ministros e ministras que semeiam exatamente esse mediano, um “lugar seguro” e controlável para finalmente colocar o Brasil “lá em cima!”, “acima de todos”.

Pobre de um país que se volta contra a sua classe artística!

Em se tratando de Marco Nanini, nem é exagero e ainda muito menos, um equívoco chamá-lo de mito. Ele faz parte da geração de europeus que, fugindo da guerra nos anos sombrios da Europa, carrega sobrenomes como Torres, Weinberg, Sfat, Montenegro, Carrero, Guarnieri, Hirsch, Ziembienski, que influenciaram profundamente o teatro brasileiro.

Nanini tem ainda um diferencial a mais. Ele faz parte da história do teatro brasileiro com sua atuação na peça em dois atos O Mistério de Irma Vap, de autoria de Charles Ludlam. O espetáculo em que ele atuava com Nery Latorraca ficou onze anos em cartaz. Em 2003, o feito cultural histórico foi incluído no Guinness Book, o livro de recordes. Toda essa bagagem de uma vida nos palcos, faz de sua participação no filme de estreia de Armando Praça, com temática ousada e absolutamente honesto, algo sublime e inesquecível.

As ferramentas usadas no teatro estão todas ali na tela com Greta. Até na hora de cambalear e dar uns passos a frente e se escorar na parede, ganha um efeito imenso na tela.

Na TV, Nanini ficou eternizado como Lineu em A Grande Família, que agora voltou à telinha para preencher o lugar deixado pelo Vídeo Show.

O Filme

Argumento bem alinhavado, diálogos primorosos. Pedro encorpora aquele cara que já tomou todas as porradas na vida, aprendeu lidar com elas e se utiliza do pragmatismo, e entende a necessidade do ato hipócrita somado à frieza que só a idade madura, possibilita. Sua amiga, vivida do Denise Weinberg é uma mulher doente em estágio terminal, contraponto ao seu temperamento forte e sua ousadia em querer ser dona do próprio desfecho, num país que não te permite nem morrer com dignidade. Perto de partir, ela precisa fazer uma escolha entre peste e cólera e o faz sem se deixar despencar no papel de vítima. A sua última subida ao palco presenteia os expectadores com um dos momentos mais dilacerantes do filme.

Na espelunca, ela interpreta uma música que ficou eternizada na voz de Elba Ramalho. “Bate Coração” vem com uma musicalidade levemente “suja”, imperfeita, com a voz meio rouca que se junta à uma interpretação visceral de Denise: “Porque o que se leva dessa vida, coração, é o amor que a gente tem pra dar” canta ela, nos lembrando que é muito, muito difícil amar em tempos de cólera. O ritual de tirar a maquiagem no camarim, tirar as joias, tem direção cuidadosa e não adquire fios novelescos. A frase que se refere a escolha da teimosa:” Eu estou fazendo isso para você aprender a viver sem mim” diz ela, a mulher forte do filme.

Greta é um filme que tem alusão aos olhos singelos de Greta Garbo, a quem o diretor homenageia, especialmente, no final, mas Greta é só uma fachada para mulheres fortes, confrontadas com as farpas do destino. Antes de sair de cena, como ela mesmo diz, sua atuação faz uma homenagem aos cabarés, aos inferninhos e às espeluncas que acolheram esquisitos, desgarrados, perdidos e soltos no mundo; fugidos de grupos preocupados com os bons costumes e mergulhados até o pescoço no lamaçal da moral dupla. A voz de Denise é um deslumbre, esbanjando densidade, dramaticidade

Você acha que vale a pena investir nessa história?” pergunta Daniela. “É a única que eu tenho”, diz Pedro sem pestanejar e com a secura na voz e no olhar como quem não pode esperar mais nada da vida e que tudo o vier, é lucro. Xeque-mate!

O terceiro Plot é protagonizado por Pedro (Demick Lopes), fugitivo da polícia. Por motivos pragmáticos e de muitas carências das duas partes, eles acabam iniciando uma relação.

Um filme como Greta não pode ter um final feliz. O que pode existir são trilhas a se vislumbrar. Do fim, ousar um recomeço, dar um passo atrás e tentar ser feliz. Como diria o mestre Woody Alles, “whaterver goes”.

Armando Praça pode se considerar um sortudo em ter convencido Marco Nanini dar vida a Pedro, um homem sofrido, sem sonhos, mas com vontades, das quais ele não pretende abdicar.

Os críticos pudicos da imprensa brasuca irão odiar esse filme. Marco Nanini, que já passou dos 70 anos e em 2017 comemorou 50 de carreira, tem várias cenas de muita sexualidade, algo que, com certeza, irá gerar muito comentários negativos, já que a premissa que rege a mídia, e fora dela, é que sexo é coisa para jovem, que a partir dos 40 fulana é velhota e o homem, um velho babaca.

Marco Nanini declarou a Revista Vogue em 2017 que, “na vida real” com seu companheiro, Fernando Libonati, o sexo não tem mais importância.

Ele foi meu namorado por muitos anos. E não deixa de ainda ser. Estamos juntos este tempo todo, só não tem mais sexo. Sexo é uma coisa muito estranha: vem e vai embora e você não sabe porque!”. Poucas reflexões sobre sexo gozaram de tanto discernimento e clareza cítrica.

Sobre Berlim…e Roma

No video, em entrevista exclusiva ao “Cenas”, Nanini fala de suas impressões ao voltar à cidade depois de 10 anos de ausência. Entre os itens da agenda turística, Nanini irá visitar livrarias para comprar livros da Berlim antiga, a um concerto na Filarmônica e, caso ele siga a minha dica culinária, ao restaurante mais antigo de Berlim (1621) onde se degusta, em ambiente rústico, bolo de carne, a super almôndega, feita em forno com 200 anos de funcionamento.

https://www.youtube.com/watch?v=o0MZ0hHH25A

Na noite de sexta-feira, acontece a premiação do “Teddy Awards”, os Ursos para filmes com temática LGBT. Greta tem chance de brilhar nessa noite.

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Fátima Lacerda

Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim e cobre o festival desde 1998. Formada em Letras no R.J e Gestão cultural na Universidade "Hanns Eisler", em Berlim é atuante nas áreas de Jornalismo além de curadora de mostras. Twitter: @FatimaRioBerlin | @CinemaBerlin
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