Crítica | Outras metragens

Ilha das Flores

Prontos para descarte

(Ilha das Flores, BRA, 1989)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Jorge Furtado
  • Roteiro: Jorge Furtado
  • Elenco: Paulo José
  • Duração: 13 minutos

O polegar opositor é o que nos separa dos outros animais. Com ele podemos segurar ferramentas, escrever cartas, fazer dinheiro circular, construir casas e plantar tomates. Com ele também podemos manipular o mundo, impor hierarquias, decidir quem come e quem não come. É com o polegar opositor que o ser humano se gaba de ser racional. Mas em Ilha das Flores, de Jorge Furtado, o dedo não aponta para a grandeza humana, aponta para a miséria que essa racionalidade produz.

O curta de 1989 se estrutura como uma aula apressada, um inventário do absurdo. A narração acelerada de Paulo José vai costurando definições, como num Telecurso 2000 desigualdade. Do plantio de um tomate ao destino final desse mesmo tomate, o filme encena uma cadeia de relações que parece científica, mas que desemboca em puro horror social. O tom didático, que poderia soar neutro, revela o sarcasmo de um mundo que se organiza de forma a garantir privilégios para alguns e restos para outros.

Ilha das Flores é uma experiência de linguagem. A montagem frenética, as imagens de arquivo, as ilustrações e o ritmo obsessivo da narração criam um choque permanente entre informação e indignação. O espectador não tem tempo para respirar, porque não há tempo na vida dos que esperam pela sobra. É um filme que se constrói na velocidade para expor a brutalidade da espera, da fome e da desigualdade.

No percurso do tomate, há humanos que escolhem e descartam, há porcos que têm prioridade na refeição, e só depois vêm as mulheres e crianças que se alimentam das sobras. O polegar opositor, símbolo de superioridade biológica, serve para lembrar que a mesma espécie capaz de produzir tecnologia avançada também pode estruturar a vida de tal forma que um porco tenha mais valor que uma pessoa pobre.

O curta não se apoia em grandes personagens. Não há heróis, não há vilões caricatos. O protagonista é o sistema, e o antagonista é o mesmo sistema. O que resta ao espectador é o desconforto de perceber que não se trata de uma exceção, mas de uma engrenagem. A ironia é que tudo se apresenta como natural, lógico e racional. E a crueldade não é mostrada como ruptura, mas como continuidade.

Ilha das Flores expõe o ridículo da organização social que sustentamos. Jorge Furtado não busca lágrimas nem compaixão, ele choca, mas, ao mesmo tempo, oferece raciocínio, lógica e conexões. O curta expõe a frieza do discurso científico para desnudar a violência por ele muitas vezes legitimada. É por isso que o continua atual, repetido, reverberando e fazendo sentido há gerações. Porque o polegar opositor segue em uso, não para garantir dignidade, mas para organizar o mundo em quem pode descartar e quem pode ser descartado.

Um grande momento
Depois que os porcos comem

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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