Crítica | Streaming e VoD

A Ira de Deus

Eram os deuses homens?

(La Ira de Dios, ARG, 2022)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Sebastián Schindel
  • Roteiro: Pablo Del Teso, Sebastián Schindel
  • Elenco: Diego Peretti, Juan Minujín, Macarena Achaga, Mónica Antonópolus, Guillermo Arengo, Romina Pinto, Pedro Merlo, Ornela D’Elia, Santiago Achaga
  • Duração: 97 minutos

‘A Ira de Deus’ se estabelece em uma contradição que não é nada benéfica para si. Das duas, uma: ou as acusações das quais Luciana outorga a Kloster são verdadeiras e o filme gira em torno do próprio rabo por uma hora e meia, ou as acusações são falsas, e o resultado então seria uma produção reconhecidamente machista. A estreia de hoje na Netflix com toda certeza chamará atenção do público e se tornará um grande sucesso, mas às prováveis custas dessa questão onde está amarrada. Qualquer que seja sua definição, não representará qualquer coisa que pudéssemos chamar de qualidade. E, em um plot twist até esperado, o filme se revela como um híbrido dos dois mundos, ou seja, seria mesmo quase impossível afastá-lo de uma pecha machista, então o abraço é feito. 

Sebastián Schindel é o diretor do interessantíssimo ‘Crimes de Família’, outra produção argentina lançada pela Netflix. Aqui ele adapta um romance de Guillermo Martinez de caráter muito dúbio, e o diretor demonstra mais uma vez sua mão dedicada a conduzir uma história de desdobramentos familiares trágicos. Por mais que o roteiro – ou sua descrição original – não nos forneça sedução o suficiente para justificar o empenho da realização, a atmosfera criada para o filme é de estranheza verdadeira, que envolve todas as suas questões de maneira até orgânica. Sem poder transformar muito algo cuja base é posterior à decisão de adaptar, o diretor faz o que pode em outra área de atuação, deixando sua marca em um produto que admira a fricção. 

A Ira de Deus
Martin Kraut/Netflix

Essa desarmonia entre duas forças vitais (roteiro e direção) não é uma primazia de ‘A Ira de Deus’, mas o grau de bizarrice empregado em sua manutenção é o ponto mais forte aqui. Uma trilha sonora aguda e evidente acentua no filme um caráter trágico e até gótico, que o faria assemelhar a uma fita de terror antiga, aliada a uma fotografia que também cria elementos do fantástico, é uma porta aberta para esses códigos. Em sua abertura, em seus signos sublinhados pela luz, como as cruzes e os caixões em chamas, o filme pega o público pela mão e tenta sempre carregá-lo na direção de uma conversa com um terror mais psicológico. Schindel sabe que esse horror muito mais perpetrado pelo Homem que pelo Mal, é uma certeza de mistura eficaz, mas o roteiro nunca contempla esses elementos para longe do gráfico.

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Há uma carga erótica não realizada no filme, ao mesmo tempo em que sua alusão a um certo teocentrismo que reafirma uma cultura de manutenção do machismo é bem utilizada na textura de seu acabamento. O que poderia estar refletido no roteiro de maneira frontal, mais parece uma caça ao tesouro metafórica, com o espectador conjecturando em prol de uma narrativa que pouco oferece de concreto. A todo momento a direção propõe debates imagéticos que são apenas parciais, sem avançar para além do campo do símbolo. Mesmo que tudo pareça meio histérico e gratuito vez por outra, ainda assim o cuidado em entregar um material de categoria no campo do plano é válido, e aí nos cabe absorver esse preparo. 

A Ira de Deus
Martin Kraut/Netflix

Esse campo de reafirmação de uma cultura onde o deus máximo de uma religião predominante no planeta é uma figura masculina cujos dogmas o venderam como onipotente, transforma a discussão extra-fílmica de ‘A Ira de Deus’ muito mais interessante do que o que vemos se desenrolar na tela. Existe, da parte da direção, essa construção do Homem como todo poderoso que define a forma e o lugar de como as coisas acontecerão, dados muito pertinentes dentro de uma observação sobre como a sociedade gira em torno do macho; ele define, ele decide, e à mulher, cabe a servidão. Lógico que o filme pode na verdade ser muito uma alegoria muito mais direta (Deus é O Poder, e como tal, determina as ações), mas essa visão ainda tenta jogar uma luz especial que o filme até banca. 

Em contrapartida, tudo que é narrativo do filme de maneira frontal, não tem a substância necessária para qualquer elucubração mais generosa. Isso significa que o filme pode e deve ser analisado de maneira direta, e na verdade A Ira de Deus não prepara um recheio muito adequado à uma análise mais aprofundada. Schindel, no entanto, cria ganchos de plano com estruturas tão firmes, que nos leva a prospectar essas possibilidades, porque sua direção oxigena a produção bem mais do que seu roteiro. 

Um grande momento
Primeiro a filha, depois a mãe 

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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1 Comentário
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Sandra
Sandra
13/11/2022 14:57

Assisti ao filme por indicação “assiste e depois conversamos”. O filme é tão absurdo que dispensaria qualquer comentário! Entretanto, como vítima de abuso sexual no passado, para mim a mensagem do filme é apenas uma: “mulher, você deve permanecer de boca fechada sobre assédio e abuso sexual”. Estou querendo entender a intenção real do diretor e equipe de produção com este filme.

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