Crítica | CinemaDestaque

Vitória

O cinema de Fernandona

(Vitória , BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Andrucha Waddington
  • Roteiro: Paula Fiuza, Fábio Gusmão
  • Elenco: Fernanda Montenegro, Alan Rocha, Linn Da Quebrada, Thawan Lucas, Laila Garin, Thelmo Fernandes, Sacha Bali
  • Duração: 110 minutos

Fernanda Montenegro é uma atriz cuja maior parte da carreira foi dedicada ao teatro. Foi no palco que passou a maior parte do tempo como atriz, e onde seu instrumento foi melhor utilizado, de acordo com a mesma. O teatro, no entanto, não tem a entrada da tv e do cinema; foi o audiovisual que deu projeção ao que pode seu nome é hoje, nacional e internacionalmente. É interessante ver que, aos 95 anos, um projeto como o de Vitória (originalmente um filme de Breno Silveira, que após a tragédia terminou nas mãos de Andrucha Waddington) retira de Montenegro o papel da representação essencial da Palavra, para dar a ela a representação essencial da Imagem. Ao longo da projeção, o que temos é a transformação gradual do corpo dessa mulher em um molde cinematográfico quase que completo, da captura do plano até sua efetiva exibição final. 

O responsável por essa leitura não é o traço da narrativa, mas o lugar onde o trabalho de Waddington alcança. Quando Silveira faleceu, no set de filmagem de um Vitória que não vemos na tela – mas que seria essencialmente um filme dele – o projeto é então herdado por outro sócio da Conspiração Filmes, não por acaso genro do que seria a protagonista do projeto. Nesse momento, existe uma clara reformulação, onde sai de cena a visão de seu diretor original, muito mais frontal e menos afeito a um lugar de investigação imagética, para que chegasse até o espectador esse olhar de rebuscamento. Desde a abertura, quando a câmera se aproxima de Montenegro sentada em um banco, com a praia de Copacabana às suas costas em meio a uma chuva torrencial, é impresso na tela grande um espaço para o questionamento desse olhar, transportando quem assiste para um lugar da construção da imagem, enquadrada exatamente na tela grande. 

Quando o gatilho da narrativa dispara e a protagonista precisa começar a filmar, Vitória então torna-se, passo a passo, um filme sobre a imagem enquanto agente de manutenção da sociedade. E será que não é esse o papel onde o Cinema se utiliza em muitos registros, e talvez ainda mais hoje? O apoio pelo qual Waddington cria sua cinematografia aqui é, em tese, o trabalho conseguido por sua protagonista que deliberadamente era, de algumas muitas formas, uma cineasta. Em busca do ângulo mais adequado, da edição já previamente realizada, dona Nina desenvolve, por conta das imagens que conseguiu do seu entorno, um estado de comunicação com a criação cinematográfica, e o filme embarca nesse estado alternativo que se apresenta como uma espécie de homenagem ao cinéma verité, sem sê-lo mas sem deixar de sê-lo também, por definição. 

Para um cineasta tão especial quanto Waddington, que já entregou histórias onde suas habilidades foram comprovadas, como Gêmeas e Eu, Tu, Eles, o tempo que ele passou dedicado a Sob Pressão nos privou de seu cinema. Seu retorno com Vitória mostra um realizador ainda com a mesma capacidade de extrair textura e complexidade das relações humanas. Nas mãos dele, um filme que se inicia em uma cenário considerado turístico é transformado em uma atmosfera acinzentada, sem qualquer vestígio de beleza estética. Pelo contrário, as ruas do filme não tem qualquer cartão postal, e Montenegro sempre parece envolta em uma realidade pouco convidativa, que se transforma em aflição crescente a cada novo bloco de eventos. 

Com um trabalho de pesquisa espacial evidente, é muito fora de propósito “acusar” Vitória de ser um trabalho protocolar, como alguns veículos apontam. O olhar de Waddington na composição dos planos é muito evidente, suas criações do local de onde Montenegro tem mais gerência – seu apartamento – evidenciam um aparato de pesquisa de imagem, com um olhar que vai além do testemunhal. O filme investiga a solidão dessa personagem através da solidão do seu espaço, em uma direção de arte assombrosa de Claudio Amaral Peixoto que esvazia a vida ao redor de Nina. A maneira como é filmada, à esgueira pelas ruas da delegacia ou por trás da persiana encardida, nos remetem ao melhor Clint Eastwood quanto possível, em elegância e economia que nunca deixam de apresentar suas intenções. 

Também essa parceria com Lula Cerri na fotografia e Sérgio Mekler na montagem permitem que o filme transporte essas referências aos olhos de um espectador menos confortável. Um arsenal de maneiras de criar e moldar diferentes formas de apresentar os cenários, registrado como ao descobrir algo novo, na maneira como interrompe os planos ou refina os enquadramentos . Isso é, por si só, uma maneira de também respeitar o cinema que Nina invoca em suas criações, acidentais ou não. Se o que a protagonista de Vitória realiza em sua tentativa de sobrevivência é motivar realização cinematográfica, então podemos dizer que o filme se abre para essa salvação através do cinema. 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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