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O Filho de Sofia

Fantasias perigosamente trocadas

(O gios tis Sofias, GRE, BUL, FRA, 2017)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Elina Psykou
  • Roteiro: Elina Psykou
  • Elenco: Victor Khomut, Valery Tscheplanowa, Thanasis Papageorgiou, Artemios Havalits, Areti Seidaridou, Ivonni Maltezou, Maria Filini, Marinos Veslemes, Christos Stergioglou
  • Duração: 111 minutos

A atmosfera do cinema grego é reconhecível com facilidade, e O Filho de Sofia não deixa de acessar esse lugar do onírico fabular, ainda que com seu olhar esteja mais conectado ao naturalismo, e essa abordagem seja pontual. Como a impregnar o universo de Misha de uma necessária fantasia em torno da opressão que ele experimenta em diferentes níveis, em diferentes países e com diferentes pessoas. Sua sensibilidade autoral acaba por aflorar essa magia que salta dos símbolos e se transforma em expressão concreta ao se chocar com os impedimentos que a vida real impõe, na Grécia ou na Rússia, naquele 2004 banhado a ouro olímpico. 

Em seu segundo longa, a cineasta Elina Psykou recorre ao realismo fantástico já previamente acessado pela juventude de um homem para encontrar sua conexão com o filho de sua jovem esposa. Imigrantes russos, mãe e filho precisam recomeçar e essa segunda chance têm suas imposições, que não serão facilmente assimiladas por uma criança que acabou de perder o pai. Introspectivo, Misha precisa do sonho fornecido por Nikos para adentrar em um novo momento, absorvendo nova língua e novas formas de afeto. O menino urso precisa acordar de seu período de hibernação, e encontrar toda uma nova floresta pronta pra devorá-lo. 

O Filho de Sofia

O tratamento de decupagem do filme é um acerto, porque amplia o escopo de um ambiente até transformá-lo em realidade alternativa para um novo ser deslocado. São apresentados os espaços cênicos, e a eles são acrescidas camadas de observação, deixando objetos desenharem a narrativa. Armas expostas nas paredes intimidam a nova família e situam a nova ordem das coisas, uma coruja iluminada é o abajur que também vigia o sono de um pequeno prisioneiro de sua nacionalidade. Os animais, em particular, começam a ganhar crescente representação gráfica, e a partir daí se apresenta ao seu redor uma fauna sinalizada – a rigidez das listras de uma zebra, a proveniência das inúmeras prestezas de uma vaca; entre eles, o menino urso assustado com o novo. 

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Apresentados os conflitos (de gerações e de identidades patrióticas, inclusive), Elina gradativamente eleva ao extremo as condições humanas de seus protagonistas, para no ápice de suas personalidades, trocá-las e mostrar como tudo na vida tem dois lados. Essa versão nada preto e branco dos personagens deveria ser um ponto de acerto, mas a partir do momento que ele passa a visualizar a criança como agente ativo de tragédia e desconstruir o arcaico moralista com humanidade e paternalismo, O Filho de Sofia deixa de ganhar complexidade para compor um painel de humanização do opressor, o que corre no fio da navalha para adentrar o campo do reacionarismo. 

Pelo menos um personagem parece abortado em suas ações e propósitos em determinado momento sem maiores reflexões, e uma nova relação ambígua que nasceria dessa parceria sai de cena antes de se fazer presente. Posteriormente Victor retorna, mas com função outra que borra a construção inicial, tornado enfim um arauto da anarquia, ao invadir a fábula para deturpá-la com seu exército de párias. Com múltiplas personalidades não-exploradas, o personagem sai enfim de cena reforçando a ideia de desconexão com o todo, ao se ejetar da narrativa sem explicação, mais uma vez; um errante que invada o roteiro pode ter seu charme casual, mas o arranjo comungado deixa sua presença esvaziada. 

No rearranjo da poesia que abre discussão para o autoritarismo doméstico hoje que pode ser visto como uma forma deturpada de demonstrar carinho de maneira insuspeita, O Filho de Sofia transforma um coming of age tradicional em um olhar para nossa ferocidade recôndita, que precisa ser aflorada de tempos em tempos. Uma delicada história de sacrifícios maternos que podem se transformar, sem perceber, em gradual dependência emocional de parte a parte, mudando os conceitos de vítima e algoz de maneira perigosa. 

Um grande momento
O banho 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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