(Que Os Olhos Ruins Não Te Enxerguem, BRA, 2019)
“Além de ser preto e pobre, ainda é viado” essa é uma das frases destacadas em Que os Olhos Ruins Não Te Enxerguem, documentário de Roberto Maty e Thabata Vecchio que enfoca o universo LGBTQIA+ na periferia. Dando voz a perseguidos por uma sociedade calcada no preconceito e na discriminação, o filme faz um retrato importante dos nossos tempos, quando de um lado está a força por espaço e reconhecimento que não desiste nunca e do outro o desprezo e a humilhação. A frase do filme está longe de estar apenas nele e repete-se em todos os cantos, é responsável pelo absurdo número de transexuais mortos e pelo desequilíbrio da população carcerária do país.
Os diretores escolhem alguns personagens para guiar a narrativa, são eles que falam e conduzem a história. A montagem traz imagens que nem sempre se conectam com os textos e há uma opção interessante pela repetição dos depoimentos, embaralhando as frases que no fundo querem dizer a mesma coisa. O dispositivo é capaz de transformar a voz daquelas pessoas na de muitas outras e sua reiteração, a persistência e a força com que essas minorias combatem a opressão.
“É preciso botar o dedo, o corpo, na ferida porque não é possível. Tem que mudar!” diz a grafiteira Nenesurreal, alguém que, mesmo lésbica, teve que se casar com um homem, de véu e grinalda na igreja, teve uma filha e hoje se sente livre e feliz, mas sem negar a responsabilidade do enfrentamento, da militância. Assim como ela, outros entrevistados são artistas de rua e cada um tem a sua história de vida e o seu relato de preconceito, amor e sucesso. É isso que mostram, por exemplo a rapper Luana Hansen e a slammer Patrícia Meira.
Que os Olhos Ruins Não Te Enxerguem percorre lugares conhecidos do preconceito, como a determinação do modo de se vestir e se portar em público, a estigmatização, as questões da raça, religião e classe social. Escuta trans, agêneros, lésbicas, drag queens e gays alcançando a representatividade em sua composição e, entre depoimentos, embala os deslocamentos com músicas que marcam o tema. É um documentário que se destaca justamente por entender o seu lugar de escuta.
Há desvios, como quando vai conversar com a avó da drag Vicky Flawless, numa cena simples e despretensiosa que dá um toque especial ao filme, um lugar de acolhimento que nem sempre é sentido. O escape, porém, é insuficiente e o documentário fica repetitivo. Em suas poucas intervenções artísticas e histórias positivas, acaba repetindo-se na forma. Tem também a obviedade de terminar em uma parada, ainda que pertinentemente embalada por Mulamba.
Mas são detalhes, o que importa é que encontra e reafirma sua mensagem urgente e, mesmo que não sempre, usa métodos criativos para isso. O que fica de Que os Olhos Ruins Não Te Enxerguem é um pouco angustiante, porque, mesmo com toda a resistência, as coisas parecem andar muito devagar. Pelo menos reafirma-se a certeza de que tem muito amor e muita gente que, junta, pode mudar tudo isso.
Um grande momento
“Não é uma obrigação minha falar que eles têm que me aceitar ou que não têm que me aceitar. É uma questão que eles têm que resolver com eles mesmos.”