(The Farewell, EUA, CHI, 2019)
Se a comoção mundial (e americana) a Parasita na última temporada americana foi facilmente entendida por motivos que ultrapassavam as qualidades técnicas e cinematográficas evidentes do filme de Bong Joon-Ho, e o diálogo claro do mesmo com o cinema de gênero já comum a sua filmografia evidenciaram isso, o olhar afetuoso e o abraço igualmente irrestrito de público e crítica a outro título oriental tem leitura mais complexa. Afinal, A Despedida nem tenta esconder o quanto sua mensagem subliminar versa sobre a decadência da velha China, ainda que o filme anuncie uma nova geração disposta a um resgate necessário.
Como os Estados Unidos da América caíram então de amores por uma produção que é tão particular de um tempo e um povo, tão diferente do que eles esperam do cinema, sendo eles tão auto centrados e orgulhosos (reparem o filme pincela lentamente que sua protagonista já absorveu tantas dessas características)? Quando a verdade salta da obra, fica difícil ignorar.
A diretora Lulu Wang disfarça a história da própria família com uma ficção que cruza diversos olhares, que vão da China tradicional ao multiculturalismo trazido pelo “estrangeiro nativo”, que migrou e volta à pátria com seus valores reorganizados, embebidos em suas novas vivências. Com suas experiências pessoais na tela, Lulu imprime credibilidade ao falar de imigrantes que não perderam os laços natais, em paralelo a outros já em processo de descaracterização patriota, sem comprometer sua visão com uma abordagem preconceituosa com nenhum dos lados.
E é exatamente por não julgar decisões válidas de seus personagens que o filme consegue abordar tão acertadamente vários lados da questão, enquanto nunca deixa de se fixar na perda de identidade de uma cultura ancestral que começa a fazer frente às vontades individuais. Sem promover qualquer debate específico, a “política do filho único” implementada no fim dos anos 1970 assombra em silêncio a enorme composta da produção, e esse é a apenas um dos aspectos que compõem o rico painel fornecido pelo filme em relação a um país que nunca para de se transformar.
Uma passagem que impressiona é quando a protagonista Billi insiste aos pais que precisa rever a casa onde morava na infância. As imagens deixam claro o que a verbalização complementa: não existe nem a sombra de mais nada, e num raro momento de exteriorização da personagem, breve nada mais haverá. Como visto em tantas produções locais (como Até Logo, Meu Filho) o excesso de transformação da China fez com que seus espaços perdessem memória, e com isso também seus habitantes. Vindo de um país que tem tanto apreço às suas tradições, essa ambiguidade aponta para uma encruzilhada às futuras gerações.
Representada por Billi, que Awkwafina interpreta no limiar da melancolia e com a certeza de que está se despedindo não apenas de um ente querido mas da História (e da sua história – ou vice-versa), à juventude que A Despedida quer jogar luz é aquela indecisa entre os dois lados da moeda – aceitar a tradição sem perder o direito ao novo, arejando o próprio passado sem perder a chave do presente. Nas mãos de Lulu, vemos um amontoado de vestígios de um tempo prestes a ser demolido, mas que precisa de um resgate, se não na seara física, absolutamente na emocional; não há uma saída que não seja no equilíbrio entre esses dois polos.
Com seus jogos tradicionais, piadas que ultrapassaram a barreira do tempo e um representação muito naturalista do ambiente familiar (ainda que especificamente o tradicional chinês), sua autora nos convida a um filme que nunca busca o lugar comum, a catarse esperada ou uma solução repetida retirada de manuais de roteiro. A Despedida nos autoriza a invadir ambientes onde o afeto dita as regras, acima de todas as tradições, de todos os clichês, e para para observar, com placidez e um timing perfeito, pessoas que não buscam a estagnação, como seu país.
Um grande momento
A despedida.