(Sementes, BRA, 2020)
- Gênero: Documentário
- Direção: Éthel Oliveira, Júlia Mariano
- Roteiro: Éthel Oliveira, Júlia Mariano
- Duração: 105 minutos
“Eu sou porque nós somos” – a frase que Marielle Franco proferiu durante a campanha para vereadora, clamava essencialmente por mulheres negras no poder – a disputa por espaço na política entre chuvas e trovoadas, onde as pretas vão riscando o céu como relâmpagos num levante feminista. O ano é 2018, que parece já ter sido há séculos mas foi a pouco mais de 30 meses… Jaqueline se maqueia enquanto cantarola “On The Radio” grande hit de Donna Summer; corta para Mônica subindo as escadarias da Candelária enquanto um drone a filma; corta para Talíria panfletando; Renata dando entrevista para a Tevê espanhola sobre a amiga Marielle e sua candidatura. Essas imagens congregadas resultam no documentário Sementes: Mulheres Pretas no Poder. Agora, na proximidade de um novo pleito eleitoral, ele surge nas redes sociais – tendo sua estreia no YouTube dia 7 de setembro -, obtendo 35 mil espectadores virtuais e colocando uma lupa sobre as candidaturas de mulheres que “herdaram” muitas das pautas de Marielle, além do compromisso de representar o legado da vereadora assassinada junto ao motorista Anderson em 14 de março daquele ano eleitoral.
Um ano atrás, Florescer por Marielle provou o quanto o legado da vereadora assassinada já tinha germinado. Mas o filme, feito a muitas mãos e olhos de uma equipe predominantemente feminina, faz, a exemplo de Entreatos e Democracia em Vertigem, a análise sociológica e cultural do zeitgeist – no caso do momento de convulsionamento e derrame cerebral que acometeu parte do eleitorado brasileiro, que elegeu o fascista Jair Messias Bolsonaro. Mesmo os gritos de #EleNão, fruto do movimento nacional e suprapartidário de milhões de mulheres que lutaram, foram as ruas no dia 29 de setembro e 20 de outubro, não evitaram a tragédia. Porém, Sementes focaliza no quanto essa onda, essa força das mulheres e de uma militância em sua maioria formada por jovens e por mulheres periféricas possibilitou a que em 2018, 4.398 mulheres declaradas negras se candidatassem a cargos no Legislativo. O que representou um aumento de quase 93% no número de candidaturas. E semeando jovens lideranças, recebidas com muito festejo por ícones da política como Luiza Erundina, como o caso de Talíria Peroné, eleita deputada federal pelo PSOL/RJ – naquela ocasião, uma das cinco mulheres da bancada federal psolista, a única negra ao lado de Áurea Carolina, do PSOL mineiro.
As cineastas Ethel Oliveira e Júlia Mariano elegem, além de Talíria, Renata Souza, Mônica Francisco, Rose Cipriano e Dani Monteiro, todas candidatas pelo PSOL a cargos no legislativo estadual. Jaqueline de Jesus (PT) e Tainá de Paula (PCdoB) completam o elenco desse filme-coral, multivozes que, apesar de mostrar a representante da mandata Quilombola, Erica Malunguinho (PSOL/SP), fica autocentrado no diretório do Rio de Janeiro – deixando de fora outras experiências como o do PSOL/PA com a militante feminista Vivi Reis conquistando 22 mil votos e a suplência na Câmara dos Deputados – e consegue trazer um panorama das candidatas pretas e de como foi o pleito naquele ano tão difícil e simbólico para a reestruturação da esquerda brasileira.
Sementes: Mulheres Pretas no Poder tem uma tessitura simples, dentro da tradição do documentário expositivo, traçando uma linha cronológica que leva da véspera das eleições até o início do ano de 2019 quando as eleitas tomam posse, ostentando como uma espada a placa com o nome de Marielle – que havia sido vandalizada por bolsominions eleitos. Mais do que a campanha em si daquelas que se tornam figuras públicas, combativas, como Talíria em especial por sua atuação no congresso – por ser talvez junto a Leci Brandão e Benedita da Silva – como uma das poucas mulheres negras desse país a conquistar um cargo no legislativo ou no executivo tão almejado, que se impõe mesmo perante olhares tortos, chama atenção as hesitações com o que “virá”, o choro que sai em meio aos risos ao ouvir a apuração no carro e a firmeza de propósito de Renata Souza – a amiga íntima e chefe de gabinete de Marielle, deputada mais votada e primeira mulher preta a assumir a Comissão de Direitos Humanos da Alerj, hoje candidata a prefeitura.
Mas as andanças de Rose Cipriano pelas baixadas de Duque de Caxias, a singeleza como expõe sua visão sobre cidadania e o papel da política na vida das pessoas comuns é um elemento que cativa dentre tantas potências. Rose, que tentou se eleger vereadora e não consegui, tampouco conquistou a vaga como deputada mas alcançou 17 mil votos – e em 2020, ela vem com esse capital eleitoral tentar uma vaga na Câmara de Vereadores novamente.
Tanta luta e tanta certeza de que são as sementes que irão dar flores e frutos perenes, faz essas mulheres não desistirem mesmo perante as campanhas fascistas, mesmo com os candidatos homens cis de partidos de ultra direita as ameaçando. A mãe de Renata confidencia, na cozinha de casa, enquanto espera a filha chegar na noite da apuração, que pensa em como foi a campanha de Marielle – feita quase toda naquela casa – e como morre de pavor de Renata ter o mesmo fim, mas que não há outra forma de mudar as coisas que não ocupando a política.
Da fala da jovem Thais Ferreira, eleita deputada sem nenhuma verba para a campanha a mensagem esperançosa de que ali se acendia uma fagulha. De que a esquerda tem que orbitar no âmbito da democracia e da civilidade, integrar as pautas e ter coragem pra enfrentar o fascismo. Que se hoje andamos descontentes gritando desesperadamente em português, temos que acreditar que o amanhã virá e com ele um alvorecer repleto de esperança.
“Mas porque tem que vir um preto por vez?”, era o questionamento de Mônica Francisco até então, quando ela se torna uma das três mulheres (pretas) da esquerda carioca a terem mandatos na Alerj. A pergunta que se torna parte de um passado muito próximo, vai se esvaindo perante a certeza de Renata de que o resultado dessa eleição, de certa forma nos mostrou o quanto estamos na vanguarda de um processo onde a política tem que ter a cara do povo. “De sonho e de sangue/E de América do Sul/Por força deste destino”.
E que assim seja, que mais sementes sejam plantadas e germinem para serem colhidas, florindo e frutificando a arena política tão árida desse país. Que o solo apodrecido se renove. Que esse filme possa solidificar essa narrativa otimista mesmo num cenário tão adverso, que comova e empolgue e faça pular aqueles que assistem – como as cantatas de campanha e o grito de #EleNão composto por Maíra Freitas, autora da trilha sonora -, reverberando as palavras que trazem a bonança pelas casas, escolas e todos os espaços. O filme está gratuitamente no canal de YouTube da Embaúba Filmes por tempo determinado e depois pode ser exibido por todes em sessões organizadas na plataforma Taturana Mobi.
Um grande momento
O discurso visceral de Talíria na noite da apuração.