(Dick Johnson Is Dead, EUA, 2020)
A cineasta Kirsten Johnson (de Cameraperson) teve a mais escalafobética das ideias. Ainda abalada com a relativamente recente passagem da mãe e observando o quadro de Alzheimer do qual sua mãe sofreu se aproximar também do pai, ela propõe e ele aceita filmar inúmeras versões da morte desse homem, sempre ligadas a algo inesperado e surpreendente, na tentativa de se aclimatar com um futuro próximo – seu pai tinha 86 quando Kirsten o filmou. Parece algo macabro, ou ao menos bizarro, mas descortinado o propósito inicial, o que salta aos olhos é o desabrochar de uma relação que precisava ser resgatada, e uma aproximação que ocorre quando o afastamento psicológico já caminha independente das vontades.
Assistir a As Mortes de Dick Johnson tendo 10 anos que moro sozinho com minha mãe e vendo nela o que o filme me mostra é minimamente intimidador; bom, eu esqueço palavras também. Títulos, às vezes; algumas tarefas – não sei distinguir algumas vezes o que é psicossomático do que é real, nos meus casos. Minha mãe e Dick, no entanto, estão em outro patamar. Em determinado momento, Kirsten declara que percebe que seu não apenas esquece fatos e o nome de algumas palavras, como repete frases e histórias com muita frequência, às vezes no mesmo dia, e ela sente que isso é um caminho sem volta, assim como eu sinto em casa. Teria como ficar indiferente a fantasmas que também me assombram?
Esteticamente, o filme trabalha em dois registros que, de tão antagônicos, acabam por criar uma ruptura harmoniosa. Há o cotidiano de Dick e Kirsten, marcado pelo naturalismo, pela coloquialidade e pelos resgates em vídeo, que reconstroem o afeto familiar aos olhos do espectador, e que desfiam a visão mais real que já tivemos sobre o Alzheimer, em sequência devastadora protagonizada por sua mãe. Paralelo a essa realidade delicada, Kirsten constrói uma atmosfera de delírio surrealista que vão desde “acidentes” graficamente impressionantes até uma visão barroca da chegada de Dick ao paraíso, lugar esse que ele afirma já viver.
Esse céu que explode em cores, em vibrações e em uma visão nada tradicional de figuras religiosas, é contrastado com uma descida igualmente metafórica ao inferno – o abandono. Um lastro de culpa carregam pai e filha por terem acordado a respeito da internação da esposa/mãe em uma clínica de repouso; a aproximação da mesma demência que sua mulher vivenciou é aflorada quando Dick se perde e vai parar em uma casa estranha pra ele. Kirsten recria esse momento em clima oposto ao onírico de sua chegada celestial; inserido no Halloween, Kirsten define que o inferno para o seu pai é seguir os passos de sua mãe.
Partindo de um desejo muito particular em pavimentar um futuro sem sofrimentos pra si, a diretora aos poucos percebe um universo onde sua mãe precisa ser resgatada e seu pai precisa ser libertado da obrigatoriedade que ela mesma criou. Como uma personagem fala em determinada passagem, a morte é inevitável… resta aceitar e viver com tranquilidade toda a vida, esteja ela em que tempo estiver. Ainda que o equilíbrio entre seus pais nunca seja alcançado em seu filme, a diretora elabora um lugar onde seu pai possa inclusive possa passar a ser seu irmão mais novo, em uma das sequências mais emocionantes do filme.
Essa emoção intrínseca de As Mortes de Dick Johnson não é necessariamente subjetiva; Kirsten tem consciência da carga emocional que seu filme faz acessar, conduzindo espectador a uma jornada tão pessoal quanto ela mesma. Apesar de fragilizar sua figura paterna, a diretora nunca o diminui, enquanto pai ou homem, pelo contrário até. Da feitura de seu filme, Kirsten acaba por literalmente transformar seu pai em um personagem que não é mais dela, promovendo assim algo que raramente acontece, a homenagem em vida. Com últimos 10 minutos onde a metalinguagem ecoa e reveste seu filme de uma qualidade ainda superior, pai e filha encontram em cena um lugar próprio onde conjugar vida e morte é apenas um truque, abrindo e fechando gavetas de possibilidades infinitas não apenas para o cinema.
Um grande momento
“Esta é a nossa casa”