Crítica | Streaming e VoD

As Três Mortes de Marisela

Documento pungente de um momento sombrio

(Las tres muertes de Marisela, MEX, 2020)

  • Gênero: Documentário
  • Direção: Carlos Perez Osorio
  • Roteiro: Carlos Perez Osorio
  • Duração: 109 minutos
  • Nota:

Em 2004, chegou de maneira póstuma às livrarias a impressionante obra-prima do chileno Roberto Bolaño “2666”, dividido em cinco partes, onde a terceira e quarta lidam com os assassinatos de mulheres em Santa Teresa. A penúltima parte é a mais dura de se ler, já que relata de maneira impessoal e quase jornalística a rotina de uma cidade ficcional onde mulheres são encontradas mortas das maneiras mais escabrosas possíveis e os policiais se revelam inábeis – ou desinteressados? – em solucionar o problema.

A Santa Teresa de Bolaño é livremente inspirada em Ciudad Juárez, cidade mexicana do condado de Chihuahua. Juárez já foi a cidade mais violenta do mundo, muito por conta da escalada de violência do poderosos cartel Sinaloa, homônimo à região. Desde 1993, a cidade registrou a marca vergonhosa de mais três mil mulheres desaparecidas e mais de 700 feminicídios comprovados, o que rendeu a expressão que atingiu massivamente a mídia internacional “las muertas de Juárez”. E é justamente sobre isso que o novo documentário true crime da Netflix, As Três Mortes de Marisela, joga luz com um verdadeiro soco no estômago.

As Três Mortes de Marisela

Marisela Escobedo Ortiz ficou famosa no México ao se tornar ativista social após sua filha de 16 anos, Rubí Marisol Frayre Escobedo, ser assassinada pelo seu parceiro Sergio Rafael Barraza Bocanegra. Foragido, Sergio foi caçado pela ex-sogra e levado a julgamento, mas foi inocentado por falta de provas (mesmo sendo um assassino confesso). Marisela, então, tornou seu nome conhecido por, ao longo de dois anos, cruzar o México atrás do feminicida, um empreendimento que levou até as últimas consequências. 

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O diretor da obra, Carlos Perez Osorio já é íntimo de assuntos acerca da questão de Direitos Humanos; seu Caravanas, documentário para Discovery Channel sobre refugiados da América Central que tentam alcançar os Estados Unidos, foi indicado ao Emmy latino na categoria de Jornalismo Investigativo. Agora, após participar da série documental culinária Las crónicas del Taco, volta à questão que aflige seu país natal de forma profunda e incômoda.

O incômodo, aliás, é a tônica de As Três Mortes de Marisela que, ao contrário de muitos true crime, não esconde a verdade; Sergio é um assassino confesso que se aproveita do sistema político corrupto para escapar sem pagar pelo crime brutal e juntar-se ao tráfico de drogas. O filme torna-se, então, a cruzada muitas vezes solitária de um indivíduo contra uma sociedade vilipendiada por interesses ilegais e é quando o longa revela justamente essa temática para falar sobre a impunidade, que se destaca dentro de seu gênero. 

As Três Mortes de Marisela

O título, apesar de poético é pontuado muito bem ao longo da trama, no sentido que após experimentar uma morte afetiva (a perda de uma filha), Marisela logo se torna um alvo de criminosos, tendo de conviver com a ameaça contra sua vida e o legado que constrói, pagando o preço por escancarar a impunidade do sistema penal mexicano. A farta disposição de imagens de arquivo através de câmeras de segurança, filmagens de julgamento e reportagens de televisão ajudam e escancarar de forma muito vívida e visual o gigantesco problema social mexicano.

Porém, As Três Mortes de Marisela, pode-se dizer, frequentemente escorrega no excesso de paixão, apelando para uma redundância discursiva e uma montagem ilustrativa que tornam um pouco óbvio e heroico demais o que está sendo mostrado. Ainda que sim, a vida de Marisela seja heroica por sua difícil cruzada, é uma vida atravessada pela tragédia, e esse excesso de emoção estilística, apesar de ter seu apelo, acaba fazendo com o que o final do filme perca sua sobriedade com um excesso de celebração

As Três Mortes de Marisela

Sim, pois o final esperançoso acaba sendo muito pouco para contrapor o que o filme relatou costurando arquivo e depoimentos com sensibilidade, detalhando momentos verdadeiramente chocantes que constituem uma página sombria na história recente do México. Não que não seja compreensível, é claro, mostrar Marisela como um ícone da luta, e essa personagem histórica é justamente o grande chamariz nesse conto da vida real de Davi contra Golias – uma mãe enlutada contra um cartel de drogas e um estado corrupto, até as últimas forças é emocionante por si só, e a marcação constante do filme nessa tecla por vezes chega a ser redundante. 

Mas podemos culpar Osorio? Diante de tamanha força vital, como não se comover? Diante disso, é compreensivelmente As Três Mortes de Marisela é um documentário muito pungente e muito urgente sobre o assunto que trata.

Um grande momento:
Quando o filho de Marisela diferencia ódio da luta por justiça.

Ver “As Três Mortes de Marisela” na Netflix

Bernardo Brum

Jornalista formado no Centro Universitário Carioca. Roteirista pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Crítico de cinema desde 2009 e podcaster desde 2015. Cinéfilo iniciado por Laranja Mecânica e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa.
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