Crítica | FestivalMostra SP

Sobradinho

A mulher memória

(Sobradinho, BRA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Marília Hughes, Cláudio Marques
  • Roteiro: Marília Hughes, Cláudio Marques
  • Elenco: Maria Francisca, Tereza Batalha, Fátima Massimo, Dona Pequenita
  • Duração: 70 minutos

Cláudio Marques e Marília Hughes tem uma carreira já estabelecida nos festivais brasileiros, entre curtas e longas premiados, e que tentam dar luz a recortes enviesados do cenário brasileiro, seja a juventude envolta pelas sombras da ditadura (Depois da Chuva) ou destacada dos conceitos de brasilidade (Guerra de Algodão). Com o trio Desterro, A Cidade do Futuro e agora esse Sobradinho, seu interesse na perda das referências espaciais e geográficas adquire contornos que ultrapassam a ficção, sem deixá-la cair no esquecimento. É a tradição das “contadeiras de histórias” que se renova no rosto e no corpo de Dona Pequenita.

Os diretores já tinham subvertido essa ótica ao registrar em imagens a história do triângulo Gilmar, Igor e Milla, protagonistas de A Cidade do Futuro não só nas telas. Ao reproduzir para as câmeras os eventos que vivenciaram sem elas, o filme não só propunha uma espécie de renovação da arte de contar histórias, agregando a elas seus personagens reais em desenvoltas recriações do próprio real (que ao ser revivido, já não é mais o real, nasce uma nova fagulha dali), mas também ampliar essa ideia dentro dessa própria trilogia. Agora, eles resgatam a protagonista de Desterro para mais uma vez tingir novas cores em cima de um quadro já previamente pintado.

Dona Pequenita fez parte da história da criação de Lago do Sobradinho, projeto que nasce da desapropriação de Serra Ramalho, do abandono de seus moradores pelo Estado e da suspensão de uma promessa de progresso pela realidade em ruínas. Essa mulher de quase 70 anos viu tudo o que o filme mostra em arquivo, as propagandas de um novo começo, os sorrisos que escondiam as reais intenções por trás dos reclames. A ela, sobraram os restos mortais não apenas de um tempo, mas principalmente de um país que se acostumou às mentiras do poder, enquanto vaga por um cemitério de paredes levantadas e restos de um espaço físico.

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Junto a essa figura de imponência tão histórica quanto os lugares que circula mas que ao contrário deles revive de maneira memorial toda aquele passado de desconstrução de sonhos e manutenção de enganos, Marília e Cláudio promovem o encontro desse mito vivo com três agentes locais, que atravessam a História em conjunto com sua sobrevivente que escolheu estar ali, no desterro, reconstituindo de maneira sensorial a origem do expurgo forçado àquelas ruas repletas de abandono. Da fricção que nasce entre a mulher memória e as responsáveis por esse resgate, os diretores reimaginam um passado para tentar preservar uma história, ainda que trágica.

E a História está em cada polegada de Dona Pequenita, seja no seu cigarro, sejam nas suas pegadas, ou no que conta e revive. Enquanto assiste à imagens de um passado que presenciou, a mulher memória reacessa às suas próprias em silêncio, já distante das imagens estáticas do notebook e submersa nas imagens em movimento que ela mesma produziu, em vida, hoje distante no espaço e no tempo. A ideia é tão poderosa imagética e narrativamente que, ainda que rememorando ideias que os diretores já aprovaram antes no mesmo grupo de projetos, sobrevive impávida a cada nova aproximação de uma protagonista maior que as imagens, produzidas por Cláudio e Marília ou pela projeção do subconsciente.

Ao adentrarmos em cada diálogo emocionado sobre a luta das agentes sociais ou ao lermos a História escrita no rosto da mulher memória, no seu caminho que une passado e presente e na sua expressividade musical contagiante. Se em Sobradinho o material parece pouco renovado ante o que apresenta imageticamente, Dona Pequenita renova o olhar de Claudio e Marília e inebria seu cinema de laços históricos com vida.

Um grande momento
Canta, Dona Pequenita…

[44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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