Crítica | FestivalMostra SP

Mosquito

A queda de um império

(Mosquito, POR, 2020)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: João Nuno Pinto
  • Roteiro: João Nuno Pinto, Fernanda Polacow, Gonçalo Waddington
  • Elenco: João Nunes Monteiro, João Lagarto, Filipe Duarte, Alfredo Brito, Miguel Moreira, Miguel Borges, Cesário Monteiro, João Vicente, Manuel João Vieira, Nuno Preto, António Nipita
  • Duração: 125 minutos

Nascido em Moçambique, João Nuno Pinto é um cineasta que apresenta em sua produção Mosquito um desenvolvimento narrativo que varre a história do próprio avô durante a Primeira Guerra e esbarra em um resgate ancestral de suas origens familiares, que leva a si mesmo e aos seus antepassados uma forma de remissão para o comportamento de 100 anos atrás e ainda ecoa hoje, partindo das colônias na África e chegando ao racismo estrutural que se formou em berço português. O olhar de seu protagonista Zacarias, que vai do estranhamento inicial ao fascínio latente, passando pelo horror que deflagra constantemente, é dividido com o espectador mas também com o próprio realizador.

Herdeiro de um cinema histórico-sensorial alicerçado por cineastas como Werner Herzog, João Nuno Pinto constrói em Mosquito um caleidoscópio de imagens que se comunica com o cinema português do passado sem abrir mão da comunicação presente, igualmente apresentada. Então o filme não caminha sozinho pelas referências familiares de Pinto, mas principalmente recria imageticamente o contexto da historicidade dos fatos apresentados – a invasão do colonizador sobre a terra colonizada não é apenas um dado para criar legenda, mas uma construção de planos que ratifiquem essa História, ao mesmo tempo em que conta a história.

Mosquito, filme português selecionado para a MostraSP

Zacarias é um rapaz de 17 anos que cai em zona de guerra com total desconhecimento espacial e etnográfico, e o filme se pauta nessa atmosfera de descoberta. O olhar da mise-en-scène é o próprio protagonista quem define, em processo de descoberta conjunta, quase como se estivéssemos a acompanhar as sequências em primeira pessoa, mas sem o caráter de action movie empregado em produções como 1917; o que flui do projeto é uma tentativa de evocar as descobertas desse jovem homem em ambiente hostil à sua vivência, sejam elas físicas ou emocionais, e assim absorvendo o máximo em sensorialidade.

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Desde seu aportar em terras africanas, sendo carregado nas costas por homens ainda escravizados muito tempo depois do fim da escravatura, até o próprio se transformar no responsável pela carga, Zacarias se reveste de camadas não que o definem, mas que se apresentam como possibilidades para um caráter em formação. Quais as opções para um homem arremessado em um lugar desconhecido lutando pela própria sobrevivência? O filme apresenta essas mesmas camadas em blocos, como que criando um mosaico de caminhos (que, no filme, se apresentam literalmente em cada jornada sua) que definirão no futuro quem ele se tornará, depois de tantas informações e transformações.

Mosquito, filme português selecionado para a MostraSP

Pinto traduz toda essa narrativa em imagens de expressividade exemplar, daquelas que a memória não pretende deixar fugir tão cedo. Com o trabalho de luz a cargo de Adolpho Veloso a valorizar cada enquadramento, explorado à exaustão pelos planos que o diretor compõe, saímos de Mosquito certos de uma profundidade imagética que raramente encontramos par, por se tratar dessa investigação formal a respeito de cada detalhe em que esses elementos são observados. Sempre atento ao fato de que o campo onde suas imagens alcançam sejam o mesmo do olhar de Zacarias, descobrimos junto a ele essas mesmas belezas e esses mesmos horrores.

Com o ritmo preciso entre a contemplação típica do cinema de fluxo e um dinamismo próprio de uma produção de guerra conseguidos pela edição de Gustavo Gianti, Mosquito é uma obra que oferece múltiplos olhares para seus intentos, sejam eles morais ou cinematográficos. Ao exibir esse quadro emancipatório masculino sem perder de vista o respeito e a celebração da ancestralidade, uma fatia de empoderamento feminino em época e lugar onde isso nem tinha espaço ainda, e criar um manancial de imagens que reflitam essas questões e as desmonte vez por outra, João Nuno Pinto não se ateve à narrativa propriamente dita para explorar suas potencialidades, desenvolvendo assim um manancial de imagens que falam por si só ao contar a ascensão e a queda dos poderes majoritários, sejam eles um País ou o Homem.

Um grande momento
Sexo é poder

[44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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