(Sputnik, RUS, 2020)
O gênero fantástico (que inclui os filmes de terror, ficção científica, fantasia, e até alguns thrillers) raramente tem longas que se mostram imediatamente atraentes para a fatia crítica. Quando um exemplar originário da Rússia não apenas faz barulho entre os especialistas como também consegue estreia comercial no Brasil, temos que prestar atenção: Sputnik – que ganhou o dispensável título Estranho Passageiro – Sputnik por aqui – de fato não é uma espécie comum, para onde quer que se olhe. Conseguindo um espaço nas telas em momento tão complexo para os cinemas brasileiros, sua chegada merece atenção.
Em teoria, nada de novo é visto no longa de Egor Abramenko, mas sim uma coleção de partes de inúmeros roteiros já aplaudidos diversas vezes anteriormente. Temos um astronauta que sobreviveu ao retorno à Terra depois de uma série de eventos desconhecidos das autoridades russas. Como se encontra com amnésia, o governo convocará uma médica com problemas na justiça para tentar acessar suas lembranças da tragédia. Por trás dessa fachada de aparente normalidade, se esconde a chegada de outro tripulante junto ao sobrevivente, onde o “junto” é elevado à enésima potência.
O filme abriga o conceito de que monstros, criaturas fantásticas, o horror em si, jaz em nós mesmos, é indissociável à nossa própria natureza, e de que como precisamos aprender a conviver com nossos demônios internos, que não apenas aparecerão vez por outra como também precisam ser domados. Sendo todos nós mesmos receptáculos do mal em sua forma mais primitiva, o longa russo investe nessa ligação das consciências entre o humano e o bestial, a conexão entre ambos que garante a sobrevivência mútua, e a revelação posterior de que o conhecimento não leva ao colapso, mas sim a compreensão superior a respeito de seu papel na cadeia de eventos.
O personagem vivido por Pyotr Fyodorov representa essa e muitas outras metáforas, tais como discussões reais a respeito de heroísmo e do tratamento dado a figuras consideradas como tais, na frente e atrás das câmeras. Como já vimos desde Os Eleitos até o recente A Jornada, o lugar sob a qual temos acesso a respeito de figuras que militaram fora das nossas dependências terrenas é sempre pantanoso; a maneira pública provavelmente se distingue da privada e Abramenko, através da fantasia, tenta investigar esses limites entre o macropolítico e as relações humanas que circundam qualquer instância.
Dentro do que se desenvolve para as amarras do gênero, Sputnik cumpre seu papel sem necessariamente evoluir nos caminhos vistos anteriormente em matéria de narrativa, tendo até alguma repetição imaginada por quem já conhece tantos produtos que avançaram anteriormente pela seara. Porém, em termos de discussão social, o filme contempla uma pluralidade de reflexões que sobrepõem os gatilhos disparadores de trama, como a própria relação que se constrói entre o astronauta/hospedeiro e a jovem médica caída em desgraça – ambos talvez em suas últimas chances de revelarem capítulos inéditos em suas biografias, que os redimam perante os seus.
Como em uma produção do gênero que se pretenda séria e relevante, Sputnik não teria como esbanjar nos tratamentos técnicos, mas tudo que ele realiza é de profundo bom gosto estético, desde a direção de arte muito caprichada até o visual composto digitalmente, desde a sequência inicial até o padrão conseguido já quando a trama engrena no horror propriamente dito, com soluções que tanto aterrorizam como elevam o material gráfico, que nem sempre consegue surpreender em uma fatia do mercado onde parece que já assistimos de tudo, e não deixando nunca transparecer que não se trata de uma produção caríssima de Hollywood – a produção se garante com muita tranquilidade.
Pra amarrar o desenvolvimento do roteiro de Oleg Malvichko e Andrey Zolotarev, Tatyana e Veshnyakov precisam compreender os valores reais de um ato de heroísmo hoje, onde pequenas ações muitas vezes devem suplantar atitudes agigantadas, e o filme ainda se preocupa em desenvolver caminhos para solucionar impasses práticos que não necessariamente poderão ser postos em prática. Sem a pretensão de provocar uma análise aprofundada de caráter humanista, Sputnik acaba exatamente por isso olhando para os dois polos que geralmente insistem em não se comunicar, e aqui o entretenimento não se revela vazio de substância, seja ela estética ou moral.
Um grande momento
Tatyana de peito aberto na ação