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A Jornada

Maternar, acreditar em si e desbravar a galáxia

(Proxima, FRA, ALE, 2019)

  • Gênero: Drama
  • Direção: Alice Winocour
  • Roteiro: Alice Winocour
  • Elenco: Eva Green, Zélie Boulant, Matt Dillon, Aleksey Fateev, Lars Eidinger, Sandra Hüller, Trond-Erik Vassal, Nancy Tate
  • Duração: 107 minutos
  • Nota:

A metáfora, a gíria espacial para o cabo que liga os astronautas a nave espacial ou estação orbital é cordão umbilical. É de praxe para os estadunidenses mas, mesmo no auge da corrida especial, os soviéticos não precisavam ficar ligados às espaçonaves por esse cabo, tendo mais liberdade de movimento e podendo realizar melhor as manobras de acoplamento destinadas à construção de uma plataforma espacial. Outra nomenclatura curiosa é a separação umbilical, que é a separação da segunda etapa do módulo onde fica acoplado o foguete antes da decolagem. O cordão umbilical humano sendo uma exclusividade cósmica dos mamíferos, formado por duas artérias e por meio do qual placenta e feto se comunicam, trocando nutrientes é um vínculo natural que dificilmente se destitui pelo corte.

A jornada de uma mãe é árdua e muita vezes pode não parecer, mas também é épica. Porém, aos homens é destinada a grandeza e os grandes feitos, mas quando se rompe com o estado das coisas, com a misoginia dessa civilização humana as mulheres ocupam o espaço que a elas também cabe – de desbravadoras, personalidades imensas. É que também são, eventualmente, mães. E astronautas ou cosmonautas, que viajam por anos ou décadas pelo espaço e galáxias sem se desconectar de seus filhotes. Mas que já sofreram e sofrem o descrédito de não serem capazes de se desconectar da terra.

A Jornada

Em A Jornada, sob a direção da conterrânea Alice Winocour (Cinco Graças), Eva Green interpreta uma mãe entre a cruz e a espada. O pôster do filme, onde ela está vestida com o traje de astronauta e segura, olhando nos olhos, a atriz mirim Zélie Boulant é tão terna e tão rara de se ver no cinema que fisga. Dentre aventuras demasiadamente masculinas como Interestelar e Ad Astra, A Jornada assegura seu lugar destacado ao lado de A Chegada e Contato – especialmente pela entrega das atrizes envolvidas. Sendo que o filme francês, talvez por ser dirigido por uma mulher, se conecte às inquietações, frustrações e desejos da personagem de uma maneira mais detalhista que ao mesmo tempo é muito abrangente. Sarah quer realizar o sonho de ir ao espaço, não vai permitir que ninguém tire isso dela ou duvide de sua capacidade mas ao mesmo tempo não acha que deva romper o vínculo com a filha de 8 anos. Quando ela retornar da missão espacial, um ano terá se passado. Mas o cordão umbilical terá se rompido ou será estendido até a superfície marciana?

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A jornada de autoaceitação toma o lugar da autopiedade que inunda a mãe astronauta cheia de dúvidas (e aqui é importante fazer um adendo destacando a capacidade dramática de Green, poucas vezes tão bem explorada no cinema mas que pode ser sorvida demoradamente ao longo de duas temporadas da série Penny Dreadful), além de ser pressionada pelos homens do programa espacial – em especial o colega Mike (Matt Dillon), o estadunidense tipicamente arrogante e garanhão. Mas até ele, mesmo não sendo cortês como o russo Anton, se dobra perante a inquebrantável força de vontade de Sarah. “Não existe isso de astronauta perfeita ou mãe perfeita. Aproveite e curta a gravidade”, ele aconselha, quando a colega está à beira de um surto ao se deparar com a fuga da filha.

A Jornada

Winocour assim orbita para longe das obviedades e maniqueísmos tão comuns em narrativas ficcionais, mas tendo a inteligência que grandes cineastas antes dela tiveram – de Kubrick com 2001, Tarkovski com Solaris a Duncan Jones com Lunar e Claire Denis com High Life – de olhar o espaço sideral e todas as tessituras que envolvem compor uma história vivida por pessoas nesse contexto, como uma oportunidade para construir um filme filosófico e belo.

“Eu sempre quis ser astronauta. Colocava o topo do abajur na cabeça e saía flutuando pela casa… Mas minha mãe dizia que não era profissão para meninas” – nesse momento em particular, logo quando é apresentada como a representante da França no espaço e única mulher da tripulação, Sarah fala de maneira desembaraçada, um tanto tímida mas contente, sendo observada pela pequena Stella. Winocour utiliza ainda como recurso narrativo, nessa sequência e em diversas outras, uma câmera go pro que é a visão subjetiva da astronauta. Ela torna não só a estrutura do filme mais fluida como nos faz estar um pouco na pele da protagonista, que vagueia pelos campos da base russa, mergulha no tanque para treino de gravidade zero ou se prepara para entrar no foguete e sumir da terra.

I’m stepping through the door
And I’m floating in a most peculiar way
And the stars look very different today

A mãe, cabeça nas nuvens, deu o nome de Stella (estrela em latim) para a filha, uma menina excepcionalmente sensível – estrelar – que ama cavalos e tem uma imaginação fulgurante. Que está se apaixonando pela primeira vez, tem dificuldades com matemática na escola e uma conexão de alma profunda com Sarah, dentro de quem flutuou por nove meses e segue orbitando em torno – seja na água da piscina ou entre os lençóis da cama compartilhada.

Stella diz muito pouco com palavras e se permite ser lida por olhares trocados com Sarah, com o pai ou com a personagem de Sandra Huller (de Toni Erdmann) que é uma espécie de acompanhante dela, designada pela Companhia Espacial da França. Quando ela lê a carta de despedida da mãe, não ouvimos a voz off de Eva Green. Apenas acompanhamos o olhar da menina por alguns minutos, percorrendo as palavras. Ela pega o papel e guarda junto ao peito. E basta para nos dar a compreensão de que elas jamais estarão separadas.

Um grande momento
A visita ao foguete no amanhecer

Ver “A Jornada” no Telecine

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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