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O Dia em Que o Esporte Parou

Aquele não era o ponto

(The Day Sports Stood Still, EUA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Antoine Fuqua
  • Roteiro: Steven Leckart
  • Duração: 84 minutos

O esporte, qualquer que seja ele, tem algo mágico, uma energia contagiante que faz com que a adrenalina e um certo espírito de comunhão tomem conta daqueles que o vivem e dos que o assistem. É uma coisa quase instintiva, que atrai a atenção, busca uma interação sensorial — algumas vezes até desconhecida — e quando chega ao clímax arrepia o corpo inteiro. Esta aí aquela pessoa que detesta futebol, mas não resiste a uma disputa de pênaltis na televisão da lanchonete (quando podíamos ir à lanchonete); a delícia de ver a final de curling, o esporte do qual nunca tinha ouvido falar; aquela sensação de acompanhar um touchdown mesmo sem dar a mínima para futebol americano; ou momentos que marcam pra sempre, como ver Gabrielle Andersen terminando a maratona nas Olimpíadas de Los Angeles, a disputa de Senna e Mansell no GP de Barcelona em 1991, o jogo de volta na Champions League entre Manchester e Real Madrid com Ronaldo e Beckham em campo, o duplo twist carpado de Daiane dos Santos, Greg Louganis saltando mesmo após o acidente em Seul e tantos outros momentos. É buscando esse sentimento que Antoine Fuqua (O Protetor) começa seu O Dia em Que o Esporte Parou, documentário original da HBO.

Tendo em vista o contexto atual, com o mundo inteiro paralisado e tentando combater um vírus letal, tomando pelo título do filme, não é difícil imaginar do que trata o filme. Bom, é o seu primeiro tópico, ao menos. Depois de uma sucessão de imagens muito bem selecionada que remetem a toda a potência do esporte, inclusive destacando a sua capacidade política, ele define o seu objeto e nos leva ao fatídico 11 de março, na Chesapeake Energy Arena. Com o estádio lotado, Utah Jazz e Oklahoma City Thunder estavam se aquecendo para começar a partida quando uma movimentação estranha começa a acontecer na quadra e o painel comunica: esse jogo está adiado. Ruby Gobert, jogador do Jazz que não estava no local, havia testado positivo. Além da partida, toda a temporada da NBA estava suspensa. O que se vê a partir de então é muito familiar: a vida em isolamento, dias ociosos, busca por novas atividades, isolamento, espera de resultado de exames, crianças pequenas em casa, saco cheio. Tudo feito a distância, da casa de cada atleta.

O Dia em Que o Esporte Parou

Fuqua escolhe uma voz para costurar seus depoimentos, a de Chris Paul, presidente da Associação Nacional de Jogadores de Basquete e então armador do Thunder. O documentário se aproveita bem da identificação que vem da pandemia e traça esse paralelo entre a ausência daquilo tudo que apresentou no começo e, de um dia para o outro, deixou de existir. Se os espectadores, assíduos e ocasionais, sentiram a falta, imagine os atletas. De outro lado, menos romântico, claro, estavam os empresários dos times, com uma máquina de muitos milhares de dólares parada. Como era de se esperar, a atualização temporal do filme vinha acompanhada graficamente da curva crescente de casos e mortes nos EUA e o caminho não é diferente do que temos hoje como perspectiva: esperar.

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Eu não consigo respirar

Mas eis que algo muito maior do que o Coronavírus aconteceu. Em 25 de maio, George Floyd é brutalmente assassinado. Durante sete minutos, um policial branco ficou com o joelho em seu pescoço, ele repetiu mais de vinte vezes que não estava conseguindo respirar, não foi ouvido. A morte aconteceu dias depois do homicídio violento de Breonna Taylor. O racismo institucionalizado fazia mais duas vítimas e o isolamento por conta de um vírus perdeu o sentido. Junto com os fatos, o documentário se transforma em outro filme, muda a forma e, além de um trabalho de resgate de arquivo, sai para retratar o movimento Black Lives Matters (Vidas Negras Importam), que tomou o país e o mundo. Chris Paul assume um papel fundamental, como homem negro e pai de duas crianças e como um nome importante de uma das liga que mais dinheiro movimenta no mundo. É quando o filme, que estava de certa forma se esquivando de assumir um papel mais político, porque é sabido que o caos sanitário teve uma participação muito forte do então mandatário no agravamento no número crescente das mortes pela doença, precisa mergulhar na política, até pela lógica trumpista estar diretamente ligada a esse movimento supremacista branco que assola o mundo, ainda que o documentário deixe a desejar nesse ponto.

O Dia em Que o Esporte Parou

Mas é interessante como, após acompanhar os protestos, Fuqua documenta a criação de um movimento efetivo pela conscientização e pela mudança, algo que, curiosamente, só se fez possível por causa da pandemia. O Dia em Que o Esporte Parou mostra como a criação da bolha transformou a NBA e a WNBA nas ligas mais engajadas dos Estados Unidos. O filme acompanha toda a movimentação logística para a formação da bolha, a adaptação e a nova vida naquelas condições. O programa, que conseguiu zerar os casos de covid entre os atletas, promoveu várias palestras e atividades de estudo e manifestações contra o racismo, além de doar mais de US$ 300 milhões para a criação de uma fundação em prol do movimento, e criar campanhas para incentivar o comparecimento nas eleições presidenciais. Mas, mesmo com todos os efeitos positivos, hoje, como nunca, sabemos o que é uma bolha e o mundo fora dela continuava o mesmo. E é aí que a gente descobre o que o filme não estava falando da pandemia. Sim, ele parou naquele 11 de março, mas ele também parou em 26 de agosto, quando os jogadores do Milwaukee Bucks, já nos playoffs, decidiram não entrar em campo contra o Orlando Magic depois que o negro Jason Blake levou sete tiros pelas costas da polícia.

O protesto gerou uma nova onda dentro da liga e foi acompanhado por várias outras ligas estadunidenses, como as de hóquei e de beisebol e protestos individuais passaram a ser ainda mais comuns pelo país. Gestos como o de Colin Kaepernick ou a saudação dos Panteras Negras passaram a ser constantes, assim como os posicionamentos. Embora enfoque o basquete e, especificamente, a NBA, Fuqua passa pela WNBA e por outros esportes, como golfe e ginástica artística, e é perceptível a sua vontade de ser inclusivo, de tentar incluir no documentário o máximo de informação que puder. Apesar do recorte impreciso, ele consegue fazer um bom retrato, mas fica devendo pontos relevantes, como a já citada menção política e a atenção à importantíssima participação feminina. Embora reserve uma pequena parte do filme à militância de Natasha Cloud, isso é quase insignificante diante de toda a participação da liga feminina.

O Dia em Que o Esporte Parou

Obviamente, é um filme feito em uma outra realidade, onde, por exemplo, uma equipe não é responsável pelo incêndio que causa a morte de seus jogadores de base e, tempos depois, no meio da pandemia, seu elenco principal recebe com gracinhas e abraços o homem que está sendo culpado pelo assassinato em massa da população do País. Mas se a organização das ligas de lá não se observa aqui, não podemos dizer o mesmo do racismo. É interessante que O Dia em Que o Esporte Parou parte de lugares de identificação, um comum a todos e outro a maioria da população, e não está exatamente nesses dois lugares o tempo inteiro, mas se transfere de um para outro. Fuqua consegue acompanhar a transformação do filme e o que se vê é angustiante, mais ainda pelo desfecho. Porque se vê o que se faz, como se pode tentar transformar, mas o quão pouco realmente se pode mudar.

Um grande momento
Todos juntos pela mesma causa.

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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