Crítica | Festival

Coisas Verdadeiras

Desejo ou apenas relacionamento intoxicante?

(True Things, GBR, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Harry Wootliff
  • Roteiro: Molly Davies, Harry Wootliff
  • Elenco: Ruth Wilson, Tom Burke, Hayley Squires, Elizabeth Rider, Frank McCusker, Ann Firbank, Tom Weston-Jones, Nathan Ampofo, Michael Moreland
  • Duração: 102 minutos

Lick my legs, I’m on fire
Lick my legs of desire
I’ll tie your legs
Keep you against my chest
Oh, you’re not rid of me
Don’t leave me
I’m hurting
I’ve been lonely
Above everything
Above every day

Uma mulher branca, classe média, assalariado e que está vivendo de maneira sonâmbula – os dias passam e ela mecanicamente vai levando uma vida monótona – tem um encontro repentino com um homem charmoso, bem daqueles que grita “cilada”, porém mesmo com o sinal de alerta é difícil de não se deixar seduzir. E Kate (personagem de Ruth Wilson) se deixa levar. Esse é o enredo de Coisas Verdadeiras, produção de Wilson e Jude Law, que conta ainda com a presença magnética de Tom Burke no elenco.

O filme coproduzido e distribuído pela BBC é dirigido por Harry Wootliff e teve a sua première no festival de Veneza, já podendo ser considerado um dos títulos mais instigantes dessa edição da Mostra. Adaptado do romance “True Things About Me”, de Deborah Kay Davies o roteiro é assinado por Wootliff e Molly Davies, dando conta de nuançar as etapas de desastroso ainda que intoxicante relacionamento amoroso.

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“Você é a minha tribo”

Amoroso é exagero, porque o que acontece entre Kate e “Blond” são encontros ligeiros, ainda que fortuitos. A primeira transa é num estacionamento vertical, sem o menor romance. Apressada, desajeitada e eletrizante. Como uma adicção, Kate espera pelo próximo telefone. Por mais uma dose latente de encontros furtivos com um homem desempregado, que recém saiu da cadeia e não esboça a menor ambição ou preocupação com a vida adulta. Coisas Verdadeiras vai linearmente se ocupando de estudar aquela mulher e os efeitos que essa relação vai desencadeando no cotidiano dela, seja o “foda-se” que ela dá para o trabalho numa espécie de companhia de empréstimos – onde conhece o tal carinha – ou para a mãe superprotetora.

Camaleônico, Burke ressurge visual e espiritualmente numa gradação outra, uma caracterização bem distinta do dândi de O Souvenir. Blond está claramente apenas passando uma chuva com Kate. Por outro lado ela está apaixonada e se agarra a ele como a uma tábua de salvação. De forma gradual ainda que intensa, Ruth Wilson mostra – mais uma vez e espera-se que dessa feita mais papéis bons no cinema surjam para ela que da show em The Affair e Luther – como aquela mulher simplória e solitária passa pelo torpor de uma paixão e pela autodescoberta do amor próprio.

Coisas Verdadeiras
Cortesia Mostra SP

Mesmerizante é o trabalho de Alex Baranowski com a trilha sonora de Coisas Verdadeiras. Sinfonias melancólicas capturam o estado de espírito de Kate e crescem em emoção quando ela se aventura com o paquera, inclusive faltando ao trabalho.

Mas Coisas Verdadeiras foge da obviedade até na progressão do relacionamento. Quando aparentemente Blond está cansado de Kate, a relação dá uma guinada e de quebra ela realiza um sonho, talvez o único que já tenha manifestado: fugir, viajar para qualquer lugar.

“Tive que correr. Até logo”

Ashley Connor, que já assinou a fotografia de O Mau Exemplo de Cameron Post e A Madeleine de Madeleine realiza uma composição muito bonita em Coisas Verdadeiras. A vida de Kate vai ganhando cores mais quentes e deixando de ser tão acinzentada, culminando na efervescente sequência onde ela anda pelas ruas de uma cidade espanhola e termina a noite dançando numa boate – nessa sequência, desde o efeito do blur (borrão) e do slow motion até a maneira em que o rosto de Ruth Wilson resplandece a excitação, todos os elementos auxiliam na criação de uma conexão sensorial com a personagem e seu momento.

A catarse está ali, muito bem posta e Wootliff materializa algo muito genuíno nesse filme modesto ainda que provocador, de artesania profundamente imbricada nos tons das atuações de seu casal central.

Um grande momento
Dancing with myself en españa

[45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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