- Gênero: Documentário
- Direção: Antoine Tassin
- Roteiro: Antoine Tassin
- Duração: 83 minutos
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Apenas 24h depois do Brasil ter conhecimento do estarrecedor caso do anestesista carioca que estuprava mulheres grávidas durante o parto (!!!), a Netflix estreia O Assassino da Minha Filha, documentário com a contundência habitual dessa onda de true crimes que têm assolado a cena. Tanto na própria Netflix quanto em podcasts como O Caso Evandro ou A Mulher da Casa Abandonada, há um interesse crescente do público por produções onde a justiça exerça algum papel no que se está sendo narrado, conseguindo ela ser feita ou não. Acredito que a produção dirigida por Antoine Tassin se seguirá a tantos outros exemplares em cartaz, atraindo a curiosidade do público em torno de notícias e casos grotescos e considerados insolúveis, por algum motivo.
Essa é a estreia de Tassin na direção de longas, que, com alguma burocracia, ou talvez melhor dizendo algum tradicionalismo, investiga uma série de erros cometidos após os eventos que levaram à morte de uma jovem de 15 anos, Kalinka, há 40 anos atrás. O filme acompanha a obstinação aguerrida de seu pai, André Bamberski, que por mais de três décadas buscou o reconhecimento contra atos de violência contra a adolescente, que nasceram dentro da casa onde ela vivia, mas estavam disseminados em consultórios médicos de várias cidades alemãs. O diretor segue à risca um certo padrão dessas produções, que não impedem seu material de chocar gradativamente a quem não o conhecia.
Como tradicionalmente acontece, as pistas jogadas inicialmente parecem apontar um grande pavor, mas essa é sempre apenas a ponta do iceberg, porque as coisas são ainda mais terríveis, a cada novos 10 minutos de produção. É uma profusão de erros primários, dos inúmeros processos judiciários que se acumulam e vão criando uma aparência de injustiça ininterrupta, que de fato acontece. No centro das questões, dois homens em lados opostos, um pai e um padrasto, interessados em questões díspares – saber e esquecer. O que Tassin nos mostra é o recheio de uma receita apavorante, que a morte de Kalinka só tratou de abafar por praticamente toda uma vida de desserviços prestados à comunidade.
O que de mais puro salta aos olhos na narrativa contada em O Assassino da minha Filha é fundamentalmente a fé inabalável de Bamberski em um final justo para, como diz, poder ter seu luto merecido. É literalmente uma vida inteira em busca do reconhecimento que nunca trará paz absoluta, porque trata-se da lembrança inequívoca da perda de uma filha – e não qualquer perda, mas a constante reiteração de práticas ligadas ao feminicídio que a sociedade não consegue frear através dos tempos. A lembrança das constantes violências cometidas contra a mulher, e o horror que é propiciado pela montagem do filme ao investigar quando tais casos começaram a ganhar força na Alemanha, são degradantes.
Do ponto de vista cinematográfico, O Assassino da minha Filha não tem qualquer pretensão de alcançar as premiações de cinema no fim do ano, embora a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas goste de, muitas vezes, indicar poços de burocracia formal e estética – literalmente todos os anos. Mas o filme de Tassin atende a um público imerso de um sentido de correção, tardia ou não, que nem sempre consegue aplicar à sua realidade, o que muitas vezes causa espanto. Porque esse mesmo público suporta que um chefe maior de Estado diga que ‘uma mulher não merece ser estuprada por ser feia’? Que sentimento justiceiro é esse que não invade a vida política assim como se exige na vida, digamos, civil?
O sucesso de produções como essa joga luz sobre uma justiça que pregamos, mas que não acatamos no dia a dia, nas nossas relações mais íntimas. Kalinkas são estupradas e mortas diariamente, com maior ou menor proximidade aos seus laços de afeto, e o público assiste a espetáculos midiáticos interessados em questões afins, sem perceber que segue diariamente acatando atos de barbárie com seu silêncio, e muitas vezes com seu voto. Paralelo a isso, o filme ainda debate até que ponto vale a sede por justiça; para um pai, vale literalmente até ultrapassar os limites. E quem há de julgar?
Um grande momento
Conhecendo Anton