- Gênero: Drama, Comédia
- Direção: Murilo Benício
- Roteiro: Adriana Falcão, Marcelo Saback, Jô Abdu
- Elenco: Drica Moraes, Leonardo Fernandes, Rodolfo Vaz, Valentina Bandeira, Claudia Missura, Lavínia Pannunzio, Marianna Armellini, Jefferson Schroeder, Gustavo Duque, Gustavo Machado, Louise Cardoso
- Duração: 90 minutos
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Murilo Benício. Visto pela primeira vez há quase 30 anos, em Fera Ferida. Saiu do elenco de apoio dessa telenovela, para ganhar tema musical e par romântico. O motivo, um só: talento. Desde então, Benício participou de grandes momentos da tv brasileira nas últimas décadas: Por Amor, O Clone, A Favorita, Avenida Brasil, e acaba de sair do remake de Pantanal, todos sucessos incontestáveis, marcos televisivos de inúmeras ordens. No cinema, Benício nunca teve a mesma sorte, apesar de Os Matadores, O Homem do Ano e O Animal Cordial, pelo qual ganhou, enfim, no cinema os prêmios que a televisão já lhe dera. Até chegar O Beijo no Asfalto, sua estreia avassaladora na direção, um longa raro, de coragem absurda. Ainda assim, nada nos preparou para Pérola.
Primeiro, porque são filmes e projetos absolutamente autônomos, um do outro. Ao mesmo tempo, são duas adaptações teatrais de mestres dos seus tempos, Nelson Rodrigues e Mauro Rasi. Ou seja, existe sim um cordão invisível que une esses projetos ao projeto – se é que existe um – do cineasta Murilo Benício. Ele não é ator de nenhum dos dois filmes, embora o tenhamos visto em cena da arriscada adaptação anterior. Aqui, no entanto, os arroubos delirantes que o cineasta se jogou nos acertos que vimos lá, desconstruindo paredes de uma adaptação finíssima, se concentram em Pérola e Mauro, os protagonistas de uma história de amor visceral – entre mãe e filho, entre pessoas de uma mesma família, de um homem com sua autonomia moral e sexual, de pessoas a um espaço físico que as completa, ou liberta, ou potencializa.
É, por assim dizer, uma nova carta de amor ao ofício de Benício, ao lavoro do ator, ao teatro enquanto casa do ator. Mas se em O Beijo do Asfalto estava o espaço cênico teatro cooptado pela magia da lente, em Pérola o que sobra do teatral é sua força cênica, sua base. O autor aqui permite experimentar a liberdade que a câmera dispõe para ocupar escalas e dispositivos outros, amplificados pela força incomensurável do plano e da imagem, que se agiganta ou se diminui com escolhas precisamente cinematográficas. E vemos também essa transformação, de um espaço impenetrável das rubricas de um texto para palco, ganhar vida para longe dele, se moldando à perfeição a um formato com curvas diferenciadas.
O trabalho de Adriana Falcão, Marcelo Saback e Jô Abdu não pode ser menosprezado, porque partiu da união entre o trabalho deles com o de seu diretor, a tradução e transcrição da embocadura do teatro para o cinema. Muito mais do que mudar e/ou adaptar um texto considerado clássico, o certo era conceber o que é visto – adequar ao novo veículo um arsenal de pensamentos, sentimentos e verdades que cabiam a um formato, e precisavam não atrapalhar a transposição para outro. Quando cogito atrapalhar, é uma forma de precisar como os tempos e transições entre o cinema e o teatro podem ser diferentes. Pérola também tem a seu favor o fato de que Benício já interpretou Mauro em um seriado que nunca estreou, ou seja, esse homem literalmente conhece seu personagem.
Cinematograficamente falando, Pérola é, ao mesmo tempo, de menor risco se comparado à estreia nos cinemas do diretor Benício, mas também uma realização de outra categoria, da produção à finalização. Sim, não há qualquer receio de afirmar sua intencionalidade popular e sua vocação para o alcance generalizado. É uma sinceridade bonita de ser ver o alcance do filme, essa busca por um jogo direto com o público final, principalmente quando pensamos o quão intrincado era o jogo cênico de O Beijo no Asfalto. Aqui, a permissão é com o sensorial de maneira direta; sem paternalizar o público, Benício encontra um delicado equilíbrio entre se pretender direto mas sem qualquer perda qualitativa. Nesse sentido, suas obras se equivalem e, porque não, se completam em suas diferenças.
Vejam, por exemplo, o trabalho de Kika Cunha na fotografia. Celebrada pelo que fez em A Frente Fria que a Chuva Traz, também uma transposição teatral, a fotógrafa literalmente ilumina cada cena, dividindo as chaves em dois significados: o cinza do luto e o colorido da vida. Isso está presente também nos trabalhos de figurino e da arte, que seguem uma ideia simples de conceito, mas que é realizada em alta potência. São as ideias de Benício concretizadas da maneira mais contente, sem extrair caricatura de seus empregos ou de tradução exagerada em suas funções. Pérola é uma obra viva e plena de significados, um manancial emocional a respeito das relações de uma família que se amava (ou melhor, ama; agora, esses personagens estão eternizados e serão sempre presente, e não passado), independente dos valores e preceitos que cada um carregava.
O coração de Pérola está na feliz confluência de todos os seus elementos, mas esse encontro é realçado pelo que faz seu elenco, em contato com esse texto tão atual quanto sutil e poderoso. Ao menos dois atores, Leonardo Fernandes e Claudia Missura, chegam a um estado de graça tão absurdo que exibem, apenas em closes seus, um material de carreira infindável. Corrigindo, Fernandes tem vários closes, sempre muito expressivos, mas seu encontro derradeiro com sua mãe, é daqueles momentos ‘não há dinheiro que pague’. Ah, não posso deixar de citar a semelhança impressionante de Fernandes com Mauro Rasi, quase como uma reencarnação física, no campo do assustador até. Já Missura, por sua vez, ganha junto a Rodolfo Vaz, momentos muito redefinidores dos lugares onde foram colocados em suas carreiras, e aqui suas capacidades afloram como talvez não tenhamos visto antes, no audiovisual.
Mas não há como falar de Pérola sem se deixar arrebatar pelo que, possivelmente, é o maior momento gravado da carreira de Drica Moraes. Com a consciência de saber que estou falando sobre a mesma atriz absurda, premiada, das maiores de sua geração, se há alma no filme de Benício, ele pertence a ela. Nunca menos do que perfeita em cena, Moraes é uma força da natureza sempre, nos impacta de maneira indelével no teatro, no cinema e na televisão, mas já tendo visto suas capacidades nos três veículos, é complexo de mensurar o tamanho do que ela faz aqui. Multifacetada, orgânica, possível e ao mesmo tempo impossível, Pérola (re)consagra uma atriz como poucas, em um país notável delas. São as imagens finais do que ela realiza, submersa em seu papel, plena para experimentar e emocionar com tamanha felicidade e entrega, que ainda comovem o humilde escriba; são seus feitos que me fazem lembrar da mãe que eu tenho e da que um dia sonhei ter, para perceber que, de muitas maneiras, todas as mães são Pérola. E que Moraes entra para o imaginário, junto a Paulo Gustavo, Regina Casé, Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Karine Teles, e tantas outras, como mais uma mãe definitiva.
É difícil sobreviver a uma obra que mexe com tantas questões embrionárias de qualquer um, na vida. Fica a pergunta a respeito da sutileza em relação a como Mauro se colocava em cena, em como ele se concebeu e concebeu a própria história, talvez com excesso de cuidado. Mas existe uma cena em Pérola, como muitas outras, repleta de grandeza, significados e segundas camadas, que é quando o protagonista conversa com sua tia Lola e muitas coisas são ditas, pensadas, não-ditas, reveladas, reencobertas, descobertas, enfrentadas, que aos poucos liberam o personagem do peso de ter vivido à sombra de uma não-revelação. Mauro (e todos nós) somos o que somos por causa de nossas Pérolas particulares, nos cabe a cada um saber retirar com cuidado de suas ostras.
Um grande momento
São inúmeros, porém… Mauro e sua tia relembram o passado