- Gênero: Documentário
- Direção: Kleber Mendonça Filho
- Roteiro: Kleber Mendonça Filho
- Elenco: Rubens Santos
- Duração: 93 minutos
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Uma Linda Mulher foi o último filme a ser exibido no Palácio Campo Grande, único cinema de rua (durante um período) próximo a minha casa, zona oeste do Rio de Janeiro, em 1990. Eu assisti ao filme de Garry Marshall em um domingo, o exato último dia de funcionamento, na penúltima sessão do filme. Essa é uma imagem forte que não me abandona, mas não sei se ela existiu ou se é uma projeção da minha memória: parado em frente ao Palácio, lágrimas, me despedindo dele visualmente, da sua fachada e do seu interior. Em Retratos Fantasmas, Kleber Mendonça Filho mostra o letreiro do mítico Cinema São Luiz, no centro de Recife, inúmeras vezes, e em uma delas podemos ler ‘Julia Roberts Richard Gere Uma Linda Mulher’. O Cine São Luiz, de alguma forma ou de outra, ainda resiste; o Palácio, não.
Saímos de Retratos Fantasmas um pouco mais íntimos de Kleber, prontos a chamá-lo pelo primeiro nome. Posso falar com segurança isso, porque não sou íntimo de Kleber – nos conhecemos, ele me vê ou viu em alguns lugares, trocamos em redes sociais uma vez ou outra, mas o cineasta é ele, eu sou só um dos muitos jornalistas pelo mundo que já escreveu sobre suas obras. Ainda assim, seu novo filme é um corajoso convite à sua casa, e entendam como quiserem a expressão ‘sua casa’; de maneira literal, ela está lá e aos poucos vamos entendendo que o diretor tem outras moradas, como todos nós. Ele se vestiu de muitos outros espaços geográficos e emocionais durante sua vida, e se despe muitas vezes aqui, com direito a vermos suas vestes pelo chão. Esse é um retrato também seu, que assim como em sua obra em construção, vai ganhando dimensões cada vez menos pessoais e mais coletivas, transformando-se também esse um filme coral. Dessa vez, estão em cena o realizador e todos os outros que o afetaram e todas as imagens que ele conseguiu resgatar e que traduzem uma ideia de país sufocada por muitos interesses.
Assim sendo, escrever um texto sobre Retratos Fantasmas que parta da pessoalidade extrema é tarefa quase natural, principalmente quando se têm 45 anos e não teve uma infância abastada. Isso significa que a primeira vez que fui a um cinema de shopping, já tinha completado 15 anos. Antes disso, minha infância e início de adolescência foi povoado exclusivamente por cinemas de rua, que são a espinha dorsal aqui. Lembro de Kleber há alguns anos, durante a pandemia, pedindo às pessoas que mandassem fotos em fachadas de cinema, quanto mais antigas melhor, de preferência no centro de Recife. Muitas delas estão em cena, e vêm invocar os mais profundos resquícios de uma história que se trava entre a ascensão de um projeto de aniquilação do Brasil, que vê afundar sua cultura e sua educação em nome do apreço desmedido pelo capital, e um capital quase essencialmente de sabor estrangeiro.
É nesse dado que Kleber mostra que, até pode partir de um afeto coletivo que o liga ao cachorro Nico ou as grades do apartamento de Setúbal, mas ele enreda sua atmosfera de uma força que o libera para falar de política e do projeto de um extermínio cultural de país que cabe nas entranhas de Retratos Fantasmas. Ou seja, não é exclusivamente de uma conexão que todo cinéfilo terá com suas próprias referências e biografias, mas com um manancial de outros elementos inseridos nos breves 90 minutos de projeção. Assim como já visto antes em sua filmografia, o diretor de O Som ao Redor e Aquarius tem uma profusão de coisas para falar em cada uma de suas obras, e o tanto de fissuras que ficam apenas no campo de suas elucubrações primeiras são percebidos em seus filmes. Aqui, apesar de se apresentar como um documentário e da duração exígua, não é diferente; o dado positivo é que Kleber instiga esse detalhamento a sair com o espectador da sessão, não o esgota e promove discussões que duram muito além da projeção, mas que poderiam estar nela explicitamente.
A maneira como a narrativa e os blocos são estruturados, que evidenciam a construção cinematográfica como um todo, mas é subvertida da ordem usual, é outro ponto de apreciação de Retratos Fantasmas. Estão sendo compiladas a estrutura de roteiro enquanto trabalho de concepção inicial de um projeto, a idéia pictórica de uma obra, o conceito sonoro que perpassa todo um trabalho, e os complementos de cada um desses setores. Não é uma ideia que os isole de maneira estanque, mas que são apresentados como um bloco de ideias inicial a um projeto. Além disso, na montagem de Matheus Farias (diretor de Inabitável e Caranguejo Rei, ao lado de Enock Carvalho), o filme desregulamenta a apresentação comum de uma forma tradicional, que é abrir seu registro para o contexto geral para então afunilar o processo até desembocar em sua alma. Pois Kleber aproxima-se do público primeiro, apresenta a ele detalhes pessoais de sua trajetória, o conquista, e então parte para sua ordem central, sua historicidade, sua preocupação política, sua revolta doce.
Seja na esfera que for, Retratos Fantasmas abriga a compenetração de seu autor na arte de contar uma história, da maneira mais singela e pequenina, ou quando se arvora por um olhar cada vez mais amplo na direção dos espaços urbanos, e de como a desvalorização mundial das cidades permitiu que o cinema fosse uma das vítimas de um afogamento generalizado. Independente de sua cinefilia ser tratada de maneira muito frontal aqui, o que Kleber mais se preocupa dessa vez é com essa intenção entre os espaços, seja um apartamento que ecoa um histórico familiar, seja um desdobramento natural da casa de um cinéfilo, a sala escura, ou seu espaço mais globalizado, as ruas de uma cidade que não cansa de se expandir. Seu diretor amplia aqui um carinho que ele já demonstrou antes, e seu ‘eu te amo’ ao centro de Recife, em tudo que filma, que recorta e cola e que reproduz, deixa claro o que qualquer espectador de obra sua já tinha percebido, de sua devoção a quem o constituiu hoje, o Cinema.
Ao menos dois personagens saem conosco da sessão e demonstram, mais uma vez, a qualidade de Kleber para a criação e moldura deles – e estamos falando de duas pessoas não-fictícias. A primeira é a própria mãe do cineasta, Joselice Jucá, uma historiadora que remonta sua casa/vida mais de uma vez, para caber o novo. A segunda é o Seu Alexandre, projecionista histórico do Art Palácio, que Kleber conheceu e entrevistou há 30 anos, às vésperas do fechamento de um dos cinemas históricos do centro de Recife, destruído pelo abandono do Estado. Retratos Fantasmas, mesmo quando se aproxima ainda mais do que seria uma moldura ficcional, ainda está sendo alargado pela nossa História, tanto do que aconteceu conosco nos últimos 50 anos da porta pra fora, como o que foi transformado em cada lar brasileiro no meio século que se passou, representado com humildade pela família de seu diretor, principalmente na sutileza com que trata de um olhar para a emancipação feminina.
Sem querer dissecar toda a produção, que não seria possível antes de próximas sessões tendo em vista a quantidade inesgotável de conversas que o filme suscita, Retratos Fantasmas ainda encontra espaço para o cinema de gênero, que Kleber nunca dissociou de sua carreira, e não seria diferente agora. No setor dramático, é muito bom observar o talento que ele demonstra para, com sua voz e timbre muito característico, conseguir driblar as armadilhas que um texto por vezes carregado é proposto por ele mesmo (já que também é o roteirista). Através de sua embocadura, o que em outro ator soaria como pesado, com ele se dissipa através de um local muito sereno de observar os elementos que dispõe à sua volta. No setor fantástico, sua versatilidade encontra a das próprias imagens acumuladas do tempo, o que ele realizou através dos anos já com o olhar ambientado para esse lado, e desemboca na cena-chave com Rubens Santos, que deveria sair daqui com ainda mais espaço no nosso cenário, sempre presente nos filmes anteriores e aqui com um momento só seu.
São muitos instantes que seguem na nossa cabeça ao fim de Retratos Fantasmas, e essa deve ser a beleza específica do cinema como um todo e desse filme em particular, que tem uma capacidade avassaladora de promover a tal máquina do tempo anunciada naquela sinopse inicial de Aquarius, antes de qualquer divulgação mais ostensiva, de que Clara seria uma viajante através das eras. É simpático perceber que é exatamente isso que Kleber promove em seu novo filme, através do agridoce itinerário nosso. Olhar para o passado, para a camisa de Kleber pedindo para fazer a coisa certa, para o beijo que acontece sendo testemunhado por Gene Hackman, para os sons vazados de imensos clássicos de nosso cinema, pro respeito e pra admiração de um profissional na direção de seus companheiros de ofício, e perceber que o país ainda pede para sofrer nova confecção, e que existe a possibilidade de sermos bonitos de novo. E vou parar por aqui pensando nos letreiros que Kleber conseguiu recuperar, e que como ele diz, conversa conosco e com o Brasil, através de cada tempo e de cada um.
Um grande momento
Chave de lágrimas