Crítica | Streaming e VoD

Isabella: O Caso Nardoni

As faces da justiça

(Isabella: O Caso Nardoni , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Claudio Manoel, Micael Langer
  • Roteiro: Felipe Flexa, Claudio Manoel, Micael Langer
  • Duração: 101 minutos

O estranhamento inicial em relação a Isabella: O Caso Nardoni é o mesmo que talvez seja o mote narrativo da obra, em sua essência. Vivemos em uma época da explosão de audiência dos programas de ‘crimes reais’, com a volta inclusive do badalado televisivo ‘Linha Direta’. A Netflix mensalmente fatura um bocado com o lançamento de inúmeras séries, minisséries – e, ok, filmes também – que versam sobre os mais diferentes casos, dos mais diferentes países do mundo. Porquê então temos apenas um longa metragem “simples” sobre um dos casos mais famosos da recente cena policial brasileira? A análise é feita a partir de uma questão puramente especulativa, de fundo sensacionalista e – e é sobre isso que a produção que chega hoje ao streaming da mesma Netflix está debruçada, que é a métrica do sucesso do gênero. 

Claudio Manoel e Micael Langer estão por trás das mesmas obras, Meu Amigo Bussunda, Chacrinha: Eu vim para confundir e não para explicar e principalmente Simonal: Ninguém Sabe o Duro que Dei são obras muito mais inventivas, na sua elaboração visual e em sua estrutura dramático-narrativa. Isabella: O Caso Nardoni é, em palavras suaves, sóbrio e ao mesmo tempo respeitoso com a história que está sendo contada; existe consciência de como todos aqueles fatos geraram dor, e os realizadores optam então pela discrição estética. Estariam então mais dispostos a seguir os passos que denunciam, de alguma forma, e apenas reproduzir midiaticamente fatos já conhecidos e explorados em excesso pelos responsáveis pelo pão e circo de sempre. 

Essa ambiguidade move o olhar na direção da obra, que aponta os dedos na direção de uma prática que remonta ao passado e ao presente, a espetacularização em torno da barbárie. Em alguns momentos de Isabella: O Caso Nardoni, Manoel e Langer conseguiram imagens desconcertantes da turba gargalhante pedindo uma suposta ‘justiça’ na frente de tribunais e delegacias, enquanto sambam e pulam. A partir de determinado momento, até por saber exatamente o que aconteceu e como terminou, o olhar passa a ser conduzido pelas fissuras que a produção poderia encontrar nas entrelinhas do caso/obra. Esses instantâneos de uma bizarra realidade nos fazem caminhar muito mais na direção do mundo em que vivemos, que nos leva a atitudes minimamente inexplicáveis como a efusividade sincera por algo que não deveria merecer nem sorriso, que dirá a alegria inconteste que vemos. 

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A montagem do filme tenta ‘saborizar’ a narrativa, com uma justaposição de imagens que traduz a inconstância dos personagens por trás dos eventos, que querem dizer coisas contrastantes muitas vezes. Essa edição causa esse arranhão momentâneo nas cenas, e são a única sensação de liberdade estética que o filme passa ao espectador. O resto é construído na narrativa, que têm muito mais força e angaria maiores possibilidades do que os realizadores propõem. Não é algo que mude o interesse do público pelo que é respeitado e procurado por Isabella: O Caso Nardoni, que conceitualmente, busca entender o fascínio das pessoas por uma ‘vampirização’ que também é cometida por elas. E isso também acomete o próprio filme (além de quem o assiste), que acaba não tendo muito mais a acrescentar ao que conhecemos – e talvez isso justifique o fato de que não existia material para conseguir uma maior duração. 

O dado mais interessante a respeito de Isabella: O Caso Nardoni, no entanto, é explorado muito mais rapidamente do que deveria ter sido. Toda a base da condenação do casal responsável foi erguida em torno da opinião pública, e as provas concretas a respeito do que aconteceu naquele apartamento, naquela noite, ficaram muito mais na convicção do que na comprovação. A opinião falou alto, o julgamento foi uma resposta aos jornais, revistas e multidão enlouquecida, e cada qual fez seu papel no teatro que foi organizado. Independente da responsabilidade que aparentemente eles tiveram, a verdade sobre o que aconteceu foi um jogo sobre achismos e conjecturas, e não sobre o que de fato ocorreu. O espectador, em sua grande maioria, deve concordar com o resultado do caso, mas não deixa de ser curioso observar que o poder do julgamento público é prévio ao ápice das redes sociais, e hoje isso é determinante para o resultado de uma contenda.

É uma armadilha onde todos acabam por cair, essa preparada pelos diretores. Está mais uma vez a mídia em busca de dissecar algo que, 15 anos depois, não acrescentou nenhum dado novo: a pequena Isabella Nardoni foi arremessada da janela pelo seu pai e madrasta, e os motivos para tal nunca foram revelados. A partir dessa costura já concreta, Isabella: O Caso Nardoni até tenta criar algum suspense no espectador, prometendo visualmente algo que nunca passa da vontade. O que resta a explorar é mais uma vez o que está naquela que é uma das mais impressionantes cenas de Oppenheimer: o prazer indiscriminado da multidão por sangue, independente do que se esteja festejando. É o povo provando, todos os dias, como o fascismo é uma semente que brota em todos os corações; nos cabe regar ou não essa planta venenosa. 

Um grande momento

O silêncio após o julgamento

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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