- Gênero: Drama
- Direção: Fábio Meira
- Roteiro: Fábio Meira
- Elenco: Vera Holtz, Arlete Salles, Louise Cardoso, Vera Valdes, Antônio Pitanga, Isabela Fontan, Iuri Saraiva, Amanda Lyra
- Duração: 90 minutos
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Eu reconheço grande parte das coisas de Tia Virgínia, e não estou falando apenas das ações e emoções expostas pelo filme de Fábio Meira. Em determinado momento, uma máquina de lavar azul tem seu momento de brilhar em cena; a casa dos meus pais teve uma máquina como aquela, naquela mesma cor. As fraldas descartáveis. A blusa doada. Muito em cena é uma reprodução, não apenas da minha família e situação, mas de tantas, não à toa Meira fez um filme sobre isso. Sobre essas verdades comuns a tantos, e que escondem uns pecadilhos que não assumimos para nós mesmos, nem para o espelho. As rugas chegaram, e as rusgas nunca faltaram… são tantos tios, tias, primos e primas, é tanto sexo escondido, é tanto estupro – ainda que alguns pareçam consentidos – tudo no recanto dos melhores lares.
Se é tão fácil se identificar com o novo filme de Meira, o caminho deveria estar livre para que tais sensações viessem à tona, e a análise fosse feita no calor da emoção. Certo? Bom, seria fácil assim, se Tia Virgínia fosse apenas o retrato de 5 em cada 10 reuniões de família do país; ainda bem, não é só isso. Em As Duas Irenes, o diretor já tinha deixado claro que sua pena preciosa não caminhava sozinha. Aqui, o diretor mais uma vez reafirma tais valores, que não são poucos nem são parcos, e avança na conversa. Trata-se de um mergulho em uma ideia de cinema que John Cassavetes nos apresentou, com aquele grupo de amigos que souberam como poucos retratar uns cotidianos bem ranzinzas, com aquelas cores e tons, e aquele mesmo sentido de urgência.
Tia Virgínia vai de uma manhã a outra, e não uma manhã qualquer; Meira exorciza a importância que é dada ao 24 de dezembro, como se nesse dia específico as coisas horrorosas fossem menos horrorosas. Nesse dia, encontramos uma família do hoje, com suas cirurgias plásticas, seus celulares, seu tempo, enfim, encontrando um outro tempo, e mostrando que ele passa sim, ele deforma sim, mas mostrando que o que era feio em 1973 não se transmutou 50 anos depois. Leonardo Feliciano, que trabalha no lugar que separa o naturalismo da fantasmagoria do cotidiano, assume as luzes daqui e nos teletransporta, desde o plano inicial do relógio até o corte seco do último frame, absolutamente filho da Nova Hollywood, para um recorte dos anos 70, no esmaecimento da imagem, no grão do plano, nos fantasmas que estão em uma casa e também estão em cada um.
É facilmente identificável em cada cena um apreço específico por algo que já não existe, uma tentativa de resgate em cima do impossível; não há máquina do tempo. Ou ao menos não existe uma que nos leve até o futuro, porque Tia Virgínia não nos deixa desacreditar que estamos constantemente sendo arremessados ao passado. Da decisão de trabalhar essa imagem em consonância com um cinema de onde nasceu a crueza, até as vagas reminiscências que o filme caça para nos fazer conectar com o que é visto, o difícil é negar a Meira sua capacidade de nos descolar do que ele mostra. Porque é tanto esmero no que é visível, e é tanta iconografia da vida em microcosmos tão fechados, que a luta aqui é para permanecer na troca, e não fugir para nós mesmos; a tentação existe.
A mágica coletiva não é conseguida apenas por Meira, Feliciano, a brilhante montagem de Karen Akerman que não nos deixa escapar da intensidade, mas de um elenco que, assim como nós, tão bem mergulha naquele universo porque também é filho dele. Mas é quase impossível que algum espaço seja dado por Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso para algum outro. Sim, são atrizes gigantescas e generosas, mas Virgínia, Vanda e Valquíria são do tamanho exato de seus talentos, e sugam a energia do ambiente com tamanha demonstração de personalidade. E são três atrizes que a televisão lhes deu muito mais que o cinema, tirando alguns pontos específicos. Ainda que exista um totem chamado Vera Holtz em cena que inclusive batiza o filme, é impossível não dar o mesmo valor ao trio como um todo, tendo em vista que as três estão em cena mesmo quando as cenas não são delas, um trabalho corporal e emocional que não é entregue todo dia. Um daqueles trabalhos de atuação tão memoráveis, que fica difícil respirar no mesmo tempo em que elas ditam o ritmo da dinâmica.
O difícil é mesmo sair recuperado de uma sessão catártica como a de Tia Virgínia, onde o relógio é mais um elemento que não apenas representa uma peça do cenário. Ele dita o mote do filme como um todo, ao nos recordar que nada daquilo é para sempre – tudo tem hora para começar e acabar. Em como o Tempo ainda é uma figura das mais inquietantes, tanto que continuam sendo feitos filmes sobre a passagem do tempo nos corpos e nas épocas, e em como a passagem desse mesmo senhor ainda provoca feridas, que às vezes fazemos em nós mesmos. De quem é a culpa afinal para o tanto de mágoa que o tempo não nos faz esquecer? Vítimas e algozes, seguimos sendo o resultado de nossos erros e acertos, até o último desaparecimento possível.
Um grande momento
No quarto, sem som