Crítica | Streaming e VoD

Do Outro Lado da Dor

Redescobertas

(Good Grief, EUA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Drama, Comédia
  • Direção: Daniel Levy
  • Roteiro: Daniel Levy
  • Elenco: Daniel Levy, Ruth Negga, Himesh Patel, Luke Evans, Celia Imrie, David Bradley, Arnaud Valois, Mehdi Baki, Jamael Westman, Kaitlyn Dever, Emma Corrin
  • Duração: 95 minutos

Eu não acompanhei a ascensão de Daniel Levy, ao longo das bem sucedidas temporadas de Schitt’s Creek, então basicamente é um ator que conheço de Alguém Avisa?, gostosa comédia romântica nataliana LGBTQIAPN+. Dito isso, sei do tanto de reconhecimento que ele recebeu através da série, mas meu contato com sua porção diretor e roteirista só chega agora, através da estreia de Do Outro Lado da Dor, na Netflix. Ao lado de Our Son, filme assistido na última Mostra SP e criminosamente ainda ignorado pelo nosso circuito, forma uma dupla de filmes gays co-estrelados por Luke Evans e atentos a um certo tipo de padrão de homossexual dos dias de hoje longe da realidade majoritária. Ainda assim, a discussão encampada por ambos, um certo tipo de constituição familiar que precisa ser normatizada, validam seus discursos igualmente. 

Eu poderia gastar linhas de escrita (e provavelmente concordar com colegas que atestarão tais afirmações) a respeito de como um certo tipo de homem gay que já não é mais jovem nem tampouco é velho, que constituiu uma base financeira além do imaginado por muitos, possa estar turvando a visão do Cinema em relação a um modo específico – e abastado – da classe. Mas não preciso de 5 minutos para pensar em Moonlight, em Fire Island, em Todos Nós Desconhecidos, em Seguindo Todos os Protocolos, em Os Primeiros Soldados, em Blue Jean, e tantos outros para perceber que essa é apenas uma fatia de uma imensa coleção de visões sobre a homossexualidade no cinema nos últimos anos. E que sim, de alguma maneira, com apartamentos caríssimos, heranças milionárias e viagens de sonho, conseguimos nos identificar com a gênese de Do Outro Lado da Dor: a perda, e a negação de um movimento natural que nós temos em nos deixarmos levar pelo que nos faz mal. 

Em 10 minutos de projeção, o casamento perfeito de Marcus é devastado pela morte precoce de Oliver. Marcus abdicou de uma carreira como pintor ao longo da vida por diferentes motivos, e nos últimos anos se dedicou a ilustrar os campeões de vendas do marido, que se transformou em uma espécie de J.K. Rowling. Com a sua ausência, o período de luto passa com as constantes descobertas de Marcus em relação ao seu relacionamento, que era bem menos idealizado do que ele imaginava – e que o próprio espectador vai se inteirando aos poucos, e entendendo que também não tinha todas as peças. Do Outro Lado da Dor, acima de tudo, se acerca de mostrar ao espectador que o movimento naturalmente humano nos transforma em seres falíveis, e em como todo ato de sofrer precisa ser vivido sim, porém gradualmente encarado. E tratado como parte integrante de um processo maior chamado vida, onde os altos e baixos (e as admirações e decepções) devem conviver também assimiladas. 

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Tem aquele verniz de obra classuda, ambientada nos melhores cenários, com os melhores figurinos e a aparência mais chique de todos, com locações em Londres e Paris, onde o espectador mais efusivo pode perder algo de suas reais sensações em meio ao bonito sofá que o filme mostra, ou a elegante casa onde o protagonista vive. Não acho que a produção use deliberadamente tais apetrechos de maneira leviana, e tenho a certeza do que está acontecendo ao redor do personagem principal, que é mais profundo e doloroso do que as imagens evidenciam. Nessa questão, Do Outro Lado da Dor também retrata as dificuldades de outras ordens de relações, principalmente as amizades, e o tanto de concessões são feitas a alguns amores, até que eles já não estejam mais cabendo em tanta mágoa mal concentrada. 

Se há segurança nessa estreia na direção de Levy em longas, o mesmo não pode ser apenas dito de seu roteiro, esse sim o material que de fato brilha em cena. Se nem sempre o principiante consegue elaborar visualmente os conceitos de melancolia em seu filme, também pelas tintas britânicas de humor que o filme concentra, a construção narrativa de Do Outro Lado da Dor compensa. São personagens defendidos com carisma por todo o elenco, mas que Levy soube desenhar de maneira muito humana. Desde Marcus até o misterioso Luca, passando pela advogada defendida com categoria pela grande Celia Imrie, o filme é repleto de tipos muito verdadeiros, em situações absolutamente verossímeis (como o surgimento de Theo), em diálogos e atenções que os definem muito bem. Vide a zona torta onde reside Thomas, um homem que não consegue impor seus desejos, com isso sendo abafado constantemente, até explodir em hora e de maneira errada. 

Ainda que falte a Do Outro Lado da Dor um sentido de urgência que esteja inteiro no já citado Our Son, vamos acompanhando esse título se afastar de intenções ‘queer’ cada vez mais, para se fortalecer nos laços que unem as pessoas que ficam, e o auto afeto. É muito importante amar alguém, mas como poderemos fazê-lo se não nos cuidarmos? Se não é uma obra seminal sobre a cena gay de hoje, o filme é muito mais delicado que grande parte do que é feito dedicado ao público heterossexual de hoje, e aqui as reclas também podem tocá-los. É um filme sobre uma das grandes redescobertas que a vida pode nos trazer após uma grande perda: olhar para si e enxergar o futuro. 

Um grande momento

O discurso do pai

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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