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O Aprendiz

Monstros da vida real

(The Apprentice , CAN, DIN, IRL, 2024)
Nota  
  • Gênero: Drama, Comédia
  • Direção: Ali Abassi
  • Roteiro: Gabriel Sherman
  • Elenco: Sebastian Stan, Jeremy Strong, Martin Donovan, Maria Bakalova, Catherine McNally, Charlie Carrick, Ben Sullivan
  • Duração: 120 minutos

A biografia cinematográfica não é uma espécie de gênero que surgiu na última década. Desde os primórdios do cinema, Abel Gance já contava sobre Napoleão, e data de 1936 a estreia do primeiro vencedor do Oscar da seara, O Grande Ziegfeld, na nona edição do prêmio. Não sai de moda, pelo contrário, ainda se move pelo cinema em qualquer época, geralmente simbolizando a face mais comportada do filme dramático. Ali Abassi, quem diria, não seria alguém em que rapidamente eu veria assumindo um compromisso do tipo, no entanto estamos aqui, com a estreia de O Aprendiz, onde o verniz estético que já apresenta arrojo na abertura não esconde as reais motivações de sua narrativa incômoda. 

Infelizmente, nada de muito considerável pode ser atribuído ao discurso que o filme abraça, ao menos não enquanto construção dramática. O que vemos não tem intenção de tornar desequilibrado o que já está em manutenção, um olhar repleto de picardia a respeito do último homem a deixar a presidência dos Estados Unidos da América. Mas ainda que sua verve possa oxigenar tanto o retratado quanto seu o espaço cinematográfico que ocupa, não demora para O Aprendiz mostrar que é sim apreciador do tradicionalismo que invade o gênero, independente do olhar da direção. Sem demora, o filme posiciona o espectador em uma redoma esperada de repetição e maniqueismo, onde a didática da situação é a mola propulsora dos eventos. 

O trabalho de Gabriel Sherman (o roteirista de Independence Day: O Ressurgimento, vejam só!), quando não é óbvio, com as intenções não apenas sublinhadas pela ação, é pouco consistente, e até ingênuo nessa proposta de enxergar os personagens em cena. O que está colocado são as características mais óbvias de cada um, montando um painel de caricatura bem-vindo, mas igualmente superficial. Com o sucesso da filmografia política de Adam McKay (principalmente A Grande Aposta e Vice) e a consagração de Succession na TV, o filme tenta “aproveitar-se” do que de melhor tais produtos podem oferecer, ignorando que nada disso é novo ou inédito. Ainda que exista sim uma provocação em curso, que mostra lados pouco midiatizados de seus personagens, O Aprendiz não almeja conversar de maneira adulta sobre o que apresenta; seus passos são ralos demais para tal. 

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Abassi, de sua cadeira, tenta controlar o universo que lhe cabe, no campo das imagens. O filme tem apreço claro pela época que retrata, e faz bem em nos transportar para aquela composição de ideias. O trabalho de fotografia de Kasper Tuxen (simplesmente o cara por trás de A Pior Pessoa do Mundo) é brilhante, no que traduz as texturas esperadas de uma produção que se coloca na comunicação dos anos 70 e 80. Existe um tratamento que borra o plano, deixando-o com a aparência suja, como feito em Boogie Nights, sendo aqui muito mais efetivo. Isso é uma decisão que compete ao diretor, conseguindo envelopar sua produção com um propósito de relegar àquelas imagens um outro tempo. Ainda que seus habitantes sejam figuras que fizeram ainda mais mal ao mundo hoje do que há 40 anos atrás, e talvez por isso o filme não precisasse se situar deslocado, mas ainda assim é um trabalho caprichoso em seu acabamento.

Vindo de duas obras consagradas e polêmicas (Border e Holy Spider), Abassi está em seu terceiro longa, onde cada um parece jogar em situações díspares umas das outras. Existe uma desconstrução do que era agudo em sua estreia, um policial de investigação onde o protagonismo não era tradicional, para chegar até aqui, uma biografia sobre o nascimento de monstros modernos. De alguma maneira então, é como se o diretor estivesse ainda empenhado nessa constituição monstruosa, já que seu longa anterior era sobre a caçada de uma jornalista a um serial killer de prostitutas iranianas. O Aprendiz é, de alguma forma, um olhar não sobre o tratado monstruoso, mas a respeito de uma aproximação ao olhar que se deforma ao longo dos tempos, em cada indivíduo. 

Apesar do roteiro não estar à altura do resto do trabalho, O Aprendiz, até pelo lugar onde está inserido, é uma produção para atores. Seu formato caricato acaba por mover os intérpretes para esse mesmo lado, cuja intencionalidade é exatamente essa mesmo. Não estamos diante de um registro ligado ao naturalismo, e sim na visão radical que essas pessoas projetam. De muitas formas, os trabalhos de Sebastian Stan e Jeremy Strong são a antítese do que as premiações procuram, ao mesmo tempo em que representem um lugar que esses mesmos eventos anseiam. São deles o carimbo final da coerência de Abassi em suas três narrativas. O Aprendiz, que parte da biografia mais tradicional, acaba sendo uma inusitada e irregular história de monstros bem humanos, ou seja, os mais assustadores que existem. 

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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