Crítica | Festival

Morte e Vida Madalena

O fim como começo

(Morte e Vida Madalena, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Guto Parente
  • Roteiro: Guto Parente
  • Elenco: Noá Bonoba, Nataly Rocha, Tavinho Teixeira, Marcus Curvelo, David Santos, Honório Félix, Jennifer Joingley, Linga Acácio, Rodrigo Fernandes, Souma, Tavares Neto, Lui Fontenele, Armando Praça, Tuan Fernandes, Carlos Francisco, Raul Lôbo
  • Duração: 85 minutos

A casa de Madalena é tela e caverna fictícia ao mesmo tempo. Ali, o luto encontra a produção, a ausência convive com o desejo de filmar, e a vida insiste em se projetar como cinema. Morte e Vida Madalena existe como espelho do próprio ato de filmar: imperfeito, improvisado, cheio de desvios, mas vivo e muito divertido. O que se vê não é apenas a obra, mas também o autor e seu gesto independente diante da forma. Guto Parente entrega duas versões de si mesmo: o criador que acredita na força do cinema artesanal e aquele que escolhe se permitir formal ou não.

Madalena (Noá Bonoba), produtora de cinema, carrega no corpo uma gravidez avançada e, na memória, a morte recente do pai. Ao mesmo tempo, se vê responsável por finalizar uma ficção científica deixada por ele. A dupla herança – o barrigão e o filme inacabado – são o motor do longa. Entre crises de equipe, diretor desaparecido e orçamento que não fecha, a protagonista encarna o retrato de uma produção que, em sua precariedade, espelha a realidade de fazer cinema independente no Brasil: resistir com pouco, criar a partir da falta, improvisar com gambiarras que sustentam não só a técnica, mas a própria existência.

A atuação de Noá sustenta o longa com firmeza delicada. Longe de ser heroína, Madalena se move num registro de vulnerabilidade e calma, com hesitações que revelam mais do que certezas. Sua gravidez não é um detalhe, é o corpo que carrega o futuro enquanto lida com a ausência e o peso da memória. O tempo da vida se sobrepõe ao tempo da produção, e cada escolha da personagem é também escolha sobre como existir no caos particular e coletivo.

O cinema dentro do cinema não aparece aqui só como exercício de metalinguagem, é exposição dos códigos e jogos de poder que atravessam um set. As disputas de ego, as alianças forjadas na precariedade, os momentos de irmandade, o humor voluntário e involuntário, e os silêncios tensos não são simplesmente bastidor, são matéria de dramaturgia. O diretor mostra que filmar é, também, negociar, errar e refazer. É insistir em continuar quando o fracasso parece iminente.

Apesar do luto que tudo permeia, há humor no modo como o filme se organiza. Um humor que nasce do improviso, do microcaos, das soluções mirabolantes para tapar buracos, dos personagens que entram em cena atrasados, confusos, exaustos. É riso de equipe que surge na frente de um paredão em uma diária alucinada, ou entre uma tentativa e outra, quando nada funciona, e mesmo assim alguém grita “ação” ou “corta”. Esse tom cômico suaviza sem apagar a dor. Mostra que, no cinema, a tragédia pode ser também o instante em que a gambiarra dá certo.

O luto, porém, permanece como eixo. A ausência do pai pesa, mas nunca se impõe como muro. O filme sabe que toda criação é também uma maneira de continuar conversando com quem partiu. A gravidez, por sua vez, é a promessa de um futuro que ainda não tem forma. Entre a memória e o futuro, o filme se constrói como ritual de permanência: algo termina, algo começa, e é no intervalo entre esses dois gestos que o filme encontra sua linguagem.

É verdade que nem todos os caminhos funcionam. Há dispersões narrativas, momentos que se alongam sem necessidade e escolhas que parecem hesitar entre o registro íntimo e o comentário social. Mas mesmo essas falhas soam parte de um cinema que não teme se expor. É a sinceridade de uma obra que assume a própria fragilidade, que entende que falhar também é forma de se manter viva. Entre o ensaio e o improviso, a perda e o nascimento, a memória e a invenção, Parente afirma que o cinema ainda é espaço de comunidade, resistência e continuidade.

Encontrando o tom cômico sem apagar a dor, e deixando que ela exista em imagem, como lembrança e promessa, Morte e Vida Madalena reafirma algo que é a cara de seu diretor: não há fim definitivo. A morte convive com o nascimento. E assim, o filme se dá como ato de persistir, de assumir que falhas são parte da dramaturgia. A casa, o set, o ventre, todos entram no quadro para dizer que o cinema não apaga o luto, faz dele matéria.

Um grande momento
Resolvendo com Oswaldo

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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