- Gênero: Drama
- Direção: Luca Guadagnino
- Roteiro: Nora Garrett
- Elenco: Julia Roberts, Ayo Edebiri, Andrew Garfield, Michael Stuhlbarg, Chloe Sevigny
- Duração: 135 minutos
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Ainda que hoje a cinefilia contenha uma fatia que diminua a importância do roteiro na conjectura dos elementos de uma produção cinematográfica, particularmente acho essa uma colocação disparatada. Mas ao perceber que desde o Festival de Veneza crucificou o novo filme de Luca Guadagnino, Depois da Caçada, como se fosse um trapo qualquer, me vejo na posição de defender a preponderância da mise-èn-scene nos códigos primordiais da constituição fílmica. Traduzindo: quem entrar para a sessão do novo filme do diretor Me Chame pelo seu Nome para julgar exclusivamente o discurso empregado pela produção, terá escolhido um olhar redutor sobre o que foi filmado. Um tanto de subjetividade é empregada na construção não apenas dos personagens, como principalmente nas ações dos mesmos.
Guadagnino se notabilizou na construção de imagens repletas de significância para além do que está sendo narrado pela ideia narrativa, e muitas vezes até trazendo nova bagagem ao que está sendo configurado pelas palavras. Isso não está em um dos recortes de sua obra, em um título específico; isso é uma característica basilar a respeito de seu autor. Tampouco acho pertinente qualquer espécie de debate a respeito da personalidade de um artista, aproveitando o contexto de sua investida central. Depois da Caçada é um filme que abre mão dos julgamentos a seus tipos, por acreditar na sombra que reside em torno de todos eles; o epílogo aqui carrega uma ideia ainda mais amplificada a respeito de tudo o que vemos, ressignificando as ideias acerca de pessoas, que são sim complexas, sem um caráter fechado em torno de suas decisões.
Como já dito, o cinema que um autor como Guadagnino encampa está além da jornada narrativa; não que o filme prescinda dela, mas sua obra precisa ser tomada para análise sem utilizar o roteiro como muleta. Não há muitas respostas taxativas acerca do que se sente aqui, porque o fascínio de um jogo de sedução coletivo é a ambiguidade. E não falando de sedução lato sensu, mas do que cada personagem em cena é capaz para mover na própria direção, mediante a aprovação do outro, da cumplicidade do outro; para isso, a persuasão ganha novos contornos. Essa é a chave corporal de um trabalho rico de detalhamento, que vai desde a mão de Julia Roberts por dentro da coxa de Andrew Garfield, até os braços jogados para o alto de Michael Stuhlbarg em entradas e saídas de uma cena tensa, em um momento profundamente enervante. A construção não está apenas codificada pelo que é dito, mas essencialmente também pelo que é visto… mas que precisa ser visto, para que tal reverberação imagética alcance propósito.
Já o que o autor responsável por obras formidáveis como Rivais e Suspiria consegue elaborar além do trabalho de corpo de seus atores, ao alcançar a composição imagética, é ainda de outra coloração. Trazendo de volta ao cinema um antigo colaborador de Spike Lee, o fotógrafo Malik Hassan Sayeed (de Irmãos de Sangue e Jogada Decisiva), Guadagnino elabora as luzes e as sombras de Depois da Caçada em ritmo e voltagem operística. Sua câmera vaza pelos corredores escuros de um apartamento grande demais até que se torne um calabouço de conversas não tidas. A lente procura o crescimento das imagens projetadas de seus atores e o resultado é mais um olhar ‘noir’ sobre cada um em cena, sem perder o interesse na investigação humana. Mas nada é revelado de comprometedor, e o campo soturno tende a crescer até o insuportável, como no último encontro entre Alma e Hank; o que está sendo dito ali, um reflexo do passado ou um decreto do presente? Nada está na impressão do texto somente, mas na boca de seus atores, filmados de esguelha.
Em uma temporada de trilhas tão evidentes quanto especiais no cinema, a nova colaboração entre Trent Reznor e Atticus Ross e Guadagnino, retira do filme qualquer possibilidade de apaziguamento. Ao invés disso, a trilha é mais um componente de Depois da Caçada que alimenta um apreço pela falta de sobriedade não ser visto como uma fantasia à sua temática. Ao invés disso, é através do acordes agudos da dupla vencedora do Oscar por A Rede Social e Soul que o filme consegue adentrar em mais uma camada de exercício dramático-cinematográfico. Pois são essas tantas distorções sonoras, as interrupções de uma pretensa paz do plano, que o filme avança na seara do horror inclusive, para mostrar como relações humanas podem ir além da toxicidade, para chegar no mais completo senso de apavoramento que culmina em muitas tragédias emocionais. A despeito de quem achará a escolha estridente, enxergo tais saídas a compor esse quadro quase artificial sobre a guerra moderna entre os muitos lugares de fala na cena real.
Além disso, contar com um elenco que se disponha a ter seu brilho conduzido por outras searas que não as das situações explícitas e próprias ao ego, também é um caminho suficientemente limpo para chegar em lugar parecido com aqui. Ayo Edebiri (de O Urso) e Andrew Garfield (indicado ao Oscar por tick tick…BOOM!) são os menos evidentes do grupo, absolutamente entregues ao trabalho de Guadagnino e Chloe Sevigny (indicada ao Oscar por Meninos não Choram) é quem tem as menores possibilidades; ainda assim são três desempenhos fortes. Já o casal interpretado por Julia Roberts e Michael Stuhlbarg alcança notas altíssimas, em registros menos subservientes, mais arriscados, igualmente margeando a linha tênue entre o naturalismo e a farsa, mas verdadeiramente integrados a um lastro estético que deveria não se comprometer tanto aos intérpretes; o que é conseguido por eles tem a ver com assinatura particular, mas também na percepção sagaz de donos de uma manipulação ainda mais ostensiva. Ela, em particular, nunca revela suas proposições, e por isso mesmo vive em um lugar rarefeito de certezas, e esse componente eleva sua entrega fina.
Ainda assim, o artesão por trás de Depois da Caçada é a capacidade de sua direção em extrair o mais orgânico de um ambiente que, acima de tudo, é Cinema. Não convém retalhar as costuras do roteiro de Nora Garrett, ainda que sejam da causa dela os momentos onde o filme ameaça escorregar em suas definições. Do ponto de vista mais amplo, o cinema é um ato político por si só, e o poder de criação de suas imagens deveria ser algo suficientemente poderoso, e liberto de tribunais que condenem autores. Quando o assunto está na zona conflitante do assédio não visto, todas as visões são verdadeiras, a partir da opinião de cada envolvido. O diretor da obra escolhe, e tem o direito de fazê-lo, jogar luz sobre os esqueletos dos armários de cada um. Porém, os armários estão trancados; fiquemos então com a investigação de cada fechadura.
Um grande momento
O encontro final de Alma e Hank, que passeia por todos os sentimentos


