Crítica | Festival

Nosferatu

O reflexo do vampiro

(Nosferatu, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Cristiano Burlan
  • Roteiro: Cristiano Burlan, Emily Hozokawa, Fernanda Farias, Rodrigo Sanches
  • Elenco: Helena Ignez, Jean-Claude Bernardet, Rodrigo Sanches, Paula Possani, Ana Carolina Marinho, Henrique Zanoni, Hélio Cícero, Biagio Pecorelli, Rebecca Leão, Camila Rios, Walter “Batata” Figueiredo, Ney Damacena
  • Duração: 88 minutos

Há criaturas que atravessam séculos porque dizem menos sobre o fantástico e mais sobre a condição humana. Em Nosferatu, Cristiano Burlan traz a mais ancestral das figuras, o vampiro, para Santos e São Paulo, e deixa que ele caminhe entre nós como quem procura um lugar para existir. Não é apenas o conde que chega ao porto, mas todo um imaginário que já foi europeu, expressionista, romântico, pop… e agora precisa enfrentar o cais, o concreto, a luz suja do amanhecer. O mal absoluto, aqui, dá lugar à solidão profunda. O diretor sabe que toda maldição é, no fundo, uma busca por pertencimento.

O vampiro de Burlan não é monstro de castelo, é corpo errante. Ele atravessa ruas, praças e prédios abandonados como alguém condenado a observar sem ser visto. O filme nunca o trata como vilão, mas como testemunha, e isso muda tudo. O terror nasce do olhar e não do ataque. Nosferatu, aqui, é um vampiro silencioso, estrangeiro dentro de um país onde ninguém o conhece, mas onde tudo, de alguma forma, o rejeita. A paisagem urbana, filmada em planos contemplativos, devolve esse deslocamento, com prédios que devoram pessoas; ruas que empurram os corpos para a margem, e sombras que não acolhem, apenas engolem. Burlan compõe uma cidade em ruína e vigília, ideal para um morto-vivo que tenta entender quem por ela vaga.

Há, na concepção estética do filme, um respeito absoluto pela tradição, que encontra o expressionismo, o chiaroscuro, em planos longos, rostos em off e várias outras referências, não pelo simples fetiche de citação. Burlan evoca aqueles que levaram dráculas e nosferatus à tela, e também ídolos daqui que marcaram o cinema como um todo, não para repetir, mas para reinscrever o mito em outros códigos. A imagem granulada, os enquadramentos estacionários, o tempo estendido: tudo colabora para que o vampiro se torne também artista. Há momentos em que ele parece contemplar o mundo como quem pensa em esculpi-lo e, de todas as lendas, esta é a única que precisa do outro para existir. Neste ponto, ele é o artista perfeito: vive do sangue dos humanos porque é deles que rouba sentido.

Em grande medida, Nosferatu é também um filme sobre arte. Sobre aqueles que, como o vampiro, estão condenados a permanecer enquanto tudo desaparece. A cada nova encarnação que da lenda – da literatura vitoriana ao expressionismo alemão, do gótico italiano ao horror hollywoodiano — ela tornou-se mito. Chegamos a um ponto em que Nosferatu já não pertence à ficção, faz parte da memória do cinema, e Burlan entende isso ao apostar no vampiro como documento. Em seu filme, ele não é mais apenas criatura inventada, mas arquivo vivo do medo, da melancolia, da fome.

Há algo específico quando se pensa nas associações que estão por todo filme: a fome do vampiro e a fome do artista se confundem. É como se ambos sugassem porque não conseguem morrer. No plano geral, com esse vampiro no Brasil, desterritorializado, expõe-se o nosso próprio desterro. Somos um país que também vive da repetição de imagens mortas, tentando revivê-las sem saber o que nos alimenta. A cada passagem pelas ruas, Nosferatu busca um lugar para permanecer, mas isso ele jamais encontrará. Talvez o segredo do fascínio esteja justamente na falta de repouso de quem carrega séculos nas costas.

Se há terror, ele não está no sangue, mas na identificação. Burlan não filma um monstro para nos assustar, mas para nos perguntar o que acontece com quem vive à margem de tudo. Nosferatu é menos horror do que melancolia. Nosferatu é um filme que, ao trazer o vampiro para cá, revela que somos nós que já caminhamos mortos, insistindo, à noite, na esperança de que alguém, em algum canto, ainda nos veja.

Um grande momento
Helena sangra de novo

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
Mais novo
Mais antigo Mais votados
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo