Crítica | CinemaDestaque

O Agente Secreto

Em busca da memória

(O Agente Secreto, BRA, FRA, NDL, ALE, 2025)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Kleber Mendonça Filho
  • Roteiro: Kleber Mendonça Filho
  • Elenco: Wagner Moura, Tânia Maria, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Isabél Zuaa, Alice Carvalho, Udo Kier, Hermila Guedes, Carlos Francisco
  • Duração: 158 minutos

Para se falar de Brasil, e de seu moto-contínuo histórico, podemos dizer que o tempo nem sempre importa. Nem era necessário especificar 1977, basta olhar para o lugar. E diante de nós está a cidade, um Recife que pulsa sob o calor, a textura da luz entrando pelas frestas, a sensação de que as coisas que não foram ditas continuam fazendo barulho. Em O Agente Secreto, Kleber Mendonça Filho volta no tempo e chega à ditadura sem obviedades. Com uma trama que segue num crescente – tanto de tensão quanto de complexidade. Ele escolhe dar um corpo e uma identidade à suspensão; ao passado que não passou, e ao presente que já desistiu de perguntar. Existe um protagonista, mas o personagem principal do filme é a ausência de memória.

O Agente Secreto abre em scope largo, comemorando a escala, chamando todas as atenções para a imagem e o momento. O Recife aparece imenso, composto de arquiteturas que guardam sombras e encontros escondidos. Camadas de janelas, poltronas antigas de cinema e caminhos secretos. A câmera anda devagar, chegando hesitante para em mexer em um passado que ainda dói. Mais do que o espaço, o elenco se impõe como presença. Chegam Wagner Moura como um cientista que se descobre forasteiro depois de voltar para casa; Tânia Maria como a que acolhe e protege, e os demais coadjuvantes como ecos. 

A imagem de um Brasil que não se emenda entre corrupções é a conhecida. As tintas da ditadura vêm ali misturadas, trazendo os favorecimentos, os desmontes e a truculência do Estado. Mendonça Filho recupera o passado vivido e eventos que lhe ficaram, como a fictícia – mas divulgada nos jornais – lenda urbana da perna cabeluda. No realismo fantástico do diretor, ela surge não para chocar, mas para lembrar de narrativas alternativas criadas como para justificar ataques moralistas e as muitas passagens sangrentas que só receberam o silêncio oficial.

No meio do filme, a estética muda. A nitidez aumenta, os tons desbotam e o contraste se suaviza. O filme vai para um lugar que não parece fazer sentido nesse roteiro que tanto cresce. Enquanto a trama de suspense, com tiros e perseguição, acontece de um lado, do outro está o não-dito, o arquivo abandonado, as gravações que ficaram escondidas. A vontade de reconstruir o tempo, sem se prender na narração de eventos, é perceptível. A ideia parece ser não explicar o trauma, mas viver a memória.

Por isso o anticlímax não decepciona, ao contrário é a melhor maneira de chegar à provocação que o filme quer fazer: como – e quantas – histórias tornaram-se insignificantes a ponto de serem apagadas, a ponto de que se negue aquilo que existiu. A nova geração do filme, dividida entre quem quer descobrir e quem vive o legado sem curiosidade, aparece banhada por luz branca, fotografada em ângulos modernos mas preguiçosos. Além de um corte narrativo seco, tudo o que o segue é estranho.

Em um contraste que não é falha, mas discurso, o scope largo dá lugar ao plano digital frio e o Recife ensolarado vira paisagem de marketing, assim como o cinema vira laboratório asséptico. O filme diz que o perigo real não foi somente a ruptura, o conjunto de ditadores ou o terrorismo de Estado, mas a aceitação silenciosa da história. A anistia do passado – e eis o perigo de anistias – não encerrou nada, apenas mudou o palco para que novos espetáculos grotescos fossem montados em um futuro de desconhecimento.

Contrastes e signos

Há cenas de ação em O Agente Secreto, com perseguições, infiltrados e suspense político. O filme, porém, se sustenta no detalhe: no corpo abandonado no posto, no corredor que ecoa, na fita de auditoria esquecida, no cinema de bairro que fecha. A câmera mantém distância, guarda o tempo, insiste no plano que parece vazio mas carrega ruído. Cada rosto é retrato e interrogação. Quando a imagem finalmente se revela estéril, a pergunta que fica não é “o que deixamos de ver”, mas “como lidar”.

Não dá para ignorar o gesto de amor que sustenta o filme. À cidade, ao cinema, aos invisíveis. Kleber põe o Recife no centro, e não apenas como cenário. Ele filma com risco, menos interessado no que aconteceu e tentando descobrir por que não perguntamos. Ao mesmo tempo, mostra que o cinema pode retomar uma de suas funções: além de entreter, pode lembrar, sacudir, abrir a ferida. E isso ele faz levando em consideração que há conversas que se sobrepõem em um filme, um resultado comunitário, de salas, de exibições e de recordações.

O desenho de produção é riquíssimo e a fotografia, impressionante. As pretensões do diretor se cumprem em um roteiro complexo, inclusive com o equilíbrio entre folclore, fantástico e história funcionando na maior parte da projeção. Há, porém, momentos que se prolongam, a montagem demora para avançar e o ritmo vacila. Talvez a ambição tenha levado à dispersão em cenas que não têm tanta força, mas isso talvez seja sintoma, não defeito, pois o erro também forma parte da memória, do não-fecho, da insistência.

Quando os créditos sobem, o que fica não é página virada, é o caderno abandonado. O que se viu foi máquina de registro e falha humana, quadro em branco e lata encontrada no lixo. Sem intenção de recuperar o passado, O Agente Secreto abre o livro e mostra que muitas páginas foram arrancadas dali. O Brasil retratado no longa não pergunta mais “onde vamos” mas “por que estamos aqui”. É um filme que não oferece solução porque o roteiro mais urgente deste país é o da memória. E esse roteirista ainda está sendo contratado.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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