- Gênero: Documentário
- Direção: Geeta Gandbhir
- Roteiro: Geeta Gandbhir
- Duração: 96 minutos
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Em A Vizinha Perfeita, a vizinhança não é apenas pano de fundo, é o campo de batalha onde se revelam poderes sutis, racismo latente e a banalização da morte. Geeta Gandbhir não quer narrar o absurdo; ela o deixa surgir em muitas câmeras corporais da polícia e em algumas câmeras de segurança, em registros que não mentem. Não há voz em off que explique, há apenas a evidência do que aconteceu.
Desde o início, uma figura aparece menos como vizinha exemplar e mais como vigilante movida por intolerância. A tensão escancara-se quando suas ligações à polícia começam a se multiplicar. Ela não quer crianças brincando por perto, barulho na rua, “invasores”. Acusa, observa, agride, persegue. O que parecia reclamação doméstica vai tornando-se hábito macabro e a câmera, impassível, documenta.
O grande trunfo formal do filme está em sua estrutura, com mais de 90 minutos de registros brutos, sem entrevistas, sem encenações. A montagem faz o espectador assumir lugar de observador incômodo, como se ele participasse da ação, ouvindo as sirenes e o grito das crianças. A violência chega na repetição, em chamadas, queixas, portas fechadas, ecos. A lentidão nessa progressão dá vertigem, porque o horror se revela apenas quando o ciclo se completa. E é chocante.
Essa neutralidade aparente esconde um discurso potente. O documentário denuncia o funcionamento da lei da Flórida e o faz sem explicitar, mas apontando como ela se torna arma de quem se acha dono do espaço. Susan Lorincz dispara depois de uma “invasora” bate em sua porta. A justificativa é medo, mas as câmeras mostram que o medo foi construído. Assim como mostram a arma, o pranto e o racismo. A personagem que se dizia “perfeita” era o oposto.
A política está em tudo, na dinâmica das relações, na disposição dos espaços e na criança negra que ri e logo cala. O filme esparrama incógnitas: quem chama a polícia primeiro, quem responde, quem silencia. No centro dessa estrutura, do lugar real e da geografia concreta, o documentário vira ponto de identificação de outras casas, outras ruas, outros quintais onde o valor da vida ainda é função de cor, classe e quem tem direito de estar. A tensão não está apenas no disparo, mas no atraso da justiça, na normalização da queixa, na banalização da vizinhança.
Ao fugir do sensacionalismo, A Vizinha Perfeita assume que não há espetáculo, há tragédia cotidiana. A construção formal exige dedicação do espectador e talvez esse seja seu maior propósito: não nos distrair, mas nos fazer enxergar. A força do documentário está em expor, sem intermediários, o absurdo da situação, a permissividade legal e as consequências dos atos na vida de uma família. Se o sistema falha, o filme assume a videografia da falha.
Não é agradável e nem oferece conforto, mas é necessário. Com câmeras inquietas, entre vizinhos e queixas, o que o documentário constrói é um retrato de como o cotidiano torna-se juiz quando o Estado não só falta, como estimula certas ações.
Um grande momento
Liga para a emergência, por favor


