Crítica | Festival

A Árvore da Autenticidade

Passado recuperado

(L'arbre de l'authenticité, RDC, 2025)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Sammy Baloji
  • Roteiro: Sammy Baloji, Ellen Meiresonne, David Van Reybrouck
  • Duração: 85 minutos

O gesto de resgatar arquivos funciona em A Árvore da Autenticidade como um ato de reparo e revolução. Quando Sammy Baloji recupera os antigos registros do Yangambi Research Center, ele dá vida aos documentos e os transforma em caminhos que trazem para o presente, reconhecendo seu valor como vestígios que exigem ser recontados. A partir desses diários, notas antigas, mapas e observações científicas coloniais, o filme reconstrói uma narrativa que denuncia o silêncio imposto, restituindo poder a quem foi subjugado.

O Congo moderno se desdobra diante de nós com ruínas, mata e memória. Baloji não explica tudo: ele coloca a câmera para olhar a natureza, do tronco descascado às páginas envelhecidas, passando pelo laboratório esquecido. Esses fragmentos se embaralham em camadas de tempo, permitindo que a floresta e os cadernos antigos se alinhem sem que um fale por cima do outro. O ato de contar torna-se disputa simbólica: quem define a memória, quem silencia, quem recupera.

O uso dos arquivos, sejam os cadernos de Paul Panda Farnana ou os registros de Abiron Beirnaert, não é catálogo histórico, mas contraponto à brutalidade do presente. Quando Farnana ressurge em off para relatar suas observações sobre o clima e extração, ele se reafirma como sujeito que atravessou as margens do silêncio colonial. Beirnaert, por sua vez, ecoa o cinismo técnico que camufla muitas formas de dominação contemporâneas. Entre essas vozes sobrepostas e dissonantes se revela que a escolha de manter os registros é uma opção contra o apagamento.

É curioso como Baloji deixa o lugar comum de filmes que abordam a mesma temática e deixa claro que a destruição ambiental está ligada à história humana de exploração. Ao dar voz à árvore como narradora vegetal, ele transforma matéria viva em testemunha. Essa transposição é ousada porque desfoca a fronteira entre sujeito e objeto; o tronco que cai não é apenas símbolo, é protagonista. Mas ela também exige do espectador o reconhecimento de que natureza e humanidade não são domínios separados e são vítimas das mesmas violências coloniais.

O filme, porém, tem suas questões. Há momentos em que a contemplação se prolonga demais, e o fluxo arquivístico parece querer contornar o impulso crítico. Alguns espectadores poderão sentir o peso da duração do longa, em uma estrutura lenta demais. Mas essa imersão prolongada também faz parte da proposta, pois somente assim as sombras que o passado projetou podem ocupar o quadro e incomodar.

A Árvore da Autenticidade não quer apenas lembrar o que foi destruído. Ele quer se posicionar contra a negligência do presente, reintroduzir vozes soterradas e colocar o leitor-espectador em dívida com a memória. O gesto de resgatar esses arquivos é ato de perturbação poética. E é nesse espaço de reverberação entre o antigo e o vivo que o filme se perpetua.

Um grande momento
O mutirão para desvendar os dados

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
Mais novo
Mais antigo Mais votados
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo